quinta-feira, 11 de abril de 2013

Transbordem de amor, como eu transbordo de Vinicius em "O haver"



O Haver


Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura

essa intimidade perfeita com o silêncio.

Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo.

Perdoai: eles não têm culpa de ter nascido.

Resta esse antigo respeito pela noite

esse falar baixo

essa mão que tateia antes de ter

esse medo de ferir tocando

essa forte mão de homem

cheia de mansidão para com tudo que existe.

Resta essa imobilidade

essa economia de gestos

essa inércia cada vez maior diante do infinito

essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível

essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons

esse sentimento da matéria em repouso

essa angústia da simultaneidade do tempo

essa lenta decomposição poética

em busca de uma só vida

de uma só morte

um só Vinícius.

Resta esse coração queimando

como um círio numa catedral em ruínas

essa tristeza diante do cotidiano

ou essa súbita alegria ao ouvir na madrugada

passos que se perdem sem memória.

Resta essa vontade de chorar diante da beleza

essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido

essa imensa piedade de si mesmo

essa imensa piedade de sua inútil poesia

de sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado

de pequenos absurdos

essa tola capacidade de rir à toa

esse ridículo desejo de ser útil

e essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade,

essa vagueza de quem sabe que tudo já foi,

como será e virá a ser.

E ao mesmo tempo esse desejo de servir

essa contemporaneidade com o amanhã

dos que não tem ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar,

de transfigurar a realidade

dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como é

e essa visão ampla dos acontecimentos

e essa impressionante e desnecessária presciência

e essa memória anterior de mundos inexistentes

e esse heroísmo estático

e essa pequenina luz indecifrável

a que às vezes os poetas tomam por esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto

na busca desesperada de alguma porta

quem sabe inexistente

e essa coragem indizível diante do grande medo

e ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer

dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos

de refletir-se em olhares sem curiosidade, sem história.

Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho,

essa vaidade de não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento

esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável.

Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços

e esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte

esse fascínio pelo momento a vir, quando, emocionada,

ela virá me abrir a porta como uma velha amante

sem saber que é a minha mais nova namorada.

Um comentário:

  1. Esse poema é maravilhoso, Anetinha. Unidade e amor. Lembrando e reivindicando a vida que segue pulsando dentro de nós. Gratidão!

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