domingo, 15 de novembro de 2009

Quociente de solidariedade


"Eu era defensor público na época. Não pelo salário ou pela estabilidade do serviço público, como os meus colegas. Não fiz um concurso qualquer, só para conseguir a festejada independência financeira. Eu era defensor porque precisava ser. E até amava o meu trabalho.

Era final de uma tarde de calor insuportável. O meu assitido tinha saído de casa às seis da manhã e perambulado pela cidade o dia inteiro, a pé, óbvio, a cabeça assando debaixo do sol escaldante. Na sala de audiência, o de praxe: o juiz, ao lado do digitador, a promotora de justiça, com sua estagiária e o meu assitido, sentado sozinho, ao lado da minha cadeira, vaga.

Assim que entrei na sala, percebi a situação: todos os presentes estavam muitíssimo incomodados com o mau cheiro do pobre rapaz. Um futum de arranhar as narinas. E ele se encolhia como podia, parecendo tentar se enrolar no próprio corpo, como um tatu-bola, até se tornar praticamente invisível. Seu nome era vergonha.

Entrei, percebi e saí. Agoniado como peixe recém-fisgado, não suportei ficar ali. E me senti muito fraco por isso.

Saí do Fórum e parei na calçada. Dentro da sala de audiência, certamente todos me esperavam para dar início à instrução. Eram já 17 horas e o sol ainda a pino.

Do meu lado, ao pé de uma placa de sinalização de trânsito, um monte de lixo enpestiava o ambiente, com seu cheiro acre de inutilidades humanas. Quem passava por ali, invariavelmente, apertava o nariz com muita força, fugindo daquele desprazer asqueroso.

Fedor. Parecia o cheiro do assistido, pensei. E novamente me senti mal por pensar assim. E não sei se por auto-punição, ou razão outra, cometi essa insanidade. Afrouxei a gravata, abri os primeiros botões da camisa, recolhi um punhado daquele monte de lixo fétido e esfreguei com força pela nuca, peito e axilas.

Arrumei o traje e voltei à sala de audiência. Sentei na cadeira ao lado do meu assitido, me desculpei pelo atraso e pedi que começássemos os trabalhos.

Nem sequer mirei os olhos surpresos (ou agradecidos) daquele réu desgraçado. Eu fazia aquilo porque precisava, não era favor nenhum."

Arnaldo Livard

2 comentários:

  1. "Afrouxei a gravata, abri os primeiros botões da camisa, recolhi um punhado daquele monte de lixo fétido e esfreguei com força pela nuca, peito e axilas."


    Ele nunca esteve tão limpo.

    ResponderExcluir
  2. o velho Livard de guerra!
    não acomodar com o que incomoda.

    ResponderExcluir