domingo, 29 de novembro de 2009

Diálogo com o peixe (7)


"Nunca vi maior idiotice do que o sujeito se deixar levar pelo medo, se é uma coisa que só tá na sua própria cabeça. Vai perder pra você mesmo?"



Diálogo com o peixe (6)


"Não existe regra mais coitada do que a Gramática"

e

"Ninguém tá se entendendo"
(ou "Casa!")



Diálogo com o peixe (5)


"Não é tão fácil se convencer de ser só gota, quando se sabe ser piscina" *

ou

"Se eu posso ser pedra, por que não posso ser Deus?"


* O porquê da incoerência (ou da angústia pela covardia).

Diálogo com o peixe (4)


"A percepção nada mais é do que uma
gressão ao óbvio" *



* Para JAF, que me ouve sempre com paciência.

Diálogo com o peixe (3)


"O sonho é uma prova diária daquilo que a gente esquece rapidamente, veste a roupa e 'volta à realidade'"


Diálogo com o peixe (2)



"É (quase) impossível convencer o meu eu do sonho de que ele não está transando com Angelina Jolie [*]"

Mas...

"Se o meu eu do sonho 'perceber' que não está transando com Angelina Joulie, tudo acaba: ele e o mundo dele. Eu acordo, ele puf! [*]"


Diálogo com o peixe (1)


"No manicômio, os lúcidos gritam suas loucuras"


sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Quer um conselho? Vá pensar!!!


Tudo começou...quando uma garotinha com as pontas muito bem aparadas e com a bochecha esquerda mais rosada do que a direita, se aprochegou pra prosear um pouco, meio ressabiada:

- Que cê tem moça?
- Qual seu problema menininha?
- Você tem um problema?
- Na verdade, o que é o problema? neh!
- Pense...você tem algum problema agora?
- Que horas são? Pense agora...nesse exato momento, nesse minuto...você tem algum problema presente?

...

- Viuh...?
- Não existem problemas presentes.
- Os problemas são todos futuros?
- E o que é o futuro?
- Quem souber morre! (risos)

- A questão é que, não existem problemas sem solução.
- Boa ou ruim sempre há solução.
- Positivo ou negativo...sim ou não?
- Concorda?

- Então, qual a melhor coisa que você pode fazer pra resolver os seus problemas?
- Pensar!
- Pra resolver da melhor maneira possível.
- Lógico!
- Logo: “problema é algo que você tem que pensar”!
- Prefiro até encarar assim, fala-se “algo que você tem que pensar”...simples...sem drama!
- Só que agora, quando digo problemas, não me refiro só ao seu problema...mas aos problemas de todos!
- Pense de novo aih...
- Tem coisa mais importante do que a sua vida e a vida dos outros seres?

...

- Claro que não! (alguém discorda?)
- Até a Carla Magna fala disso.
- Então...minha filha...vá pensar sobre as melhores soluções pra você e para o mundo!
- Pegue uma tarde toda...deite sua cabeça no travesseiro...e pense!
- Agora pense mesmo...não vá dormir não!
- Não vamos dormir!
- Sabe porquê?
- Esse é o objetivo.
- Simplesmente impedir que você pense ou que você tenha tempo pra pensar!
- Você já percebeu que você nunca tem tempo pra resolver os seus problemas?
- Imagine os do mundo.
- E o pior, quando você consegue resolver, é o sistema que “resolve”.
- Mas não deixe isso acontecer.
- Sabe como?
- Só te digo uma coisa....

...

- Quer um conselho? Vá pensar!

...

- Mas eu só queria saber a data da prova...você sabe?

Uma burca para Geisy


I

Quando Geisy apareceu

Balançando o mucumbu

Na Faculdade Uniban,

Foi o maior sururu:

Teve reza e ladainha;

Não sabia que uma calcinha

Causava tanto rebu.


II

Trajava um mini-vestido,

Arrochado e cor de rosa;

Perfumada de extrato,

Toda ancha e toda prosa,

Pensou que estava abafando

E ia ter rapaz gritando:

“Arrocha a tampa, gostosa!”


III

Mas Geisy se enganou,

O paulista é acanhado:

Quando vê lance de perna,

Fica logo indignado.

Os motivos eu não sei,

Mas pra passeata gay

Vai todo mundo animado!


IV

Ainda na escadaria,

Só se ouvia a estudantada

Dando urros, dando gritos,

Colérica e indignada

Como quem vai para a luta,

Chamando-a de prostituta

E de mulherzinha safada.


V

Geisy ficou acuada,

Num canto, triste a chorar,

Procurou um agasalho

Para cobrir o lugar,

Quando um rapaz inocente

Disse: “oh troço mais indecente,

Acho que vou desmaiar!”


VI

A Faculdade Uniban,

Que está em último lugar

Nas provas que o MEC faz,

Quis logo se destacar:

Decidiu no mesmo instante

Expulsar a estudante

Do seu quadro regular.


VII

Totalmente escorraçada,

Sem ter mais onde estudar,

Geisy precisa de ajuda

Para a vida retomar,

Mas na novela das oito

É um tal de molhar biscoito

E ninguém pra reclamar.


VIII

O fato repercutiu

De Paris até Omã.

Soube que Ahmadinejad

Festejou lá no Irã,

Foi uma festa de arromba

Com direito a carro-bomba

Da milícia Talibã.


IX

E o rico Osama Bin Laden,

Agradecendo a Alá,

Nas montanhas cazaquistãs

Onde foi se homiziar

Com uma cigana turca,

Mandou fazer uma burca

Para a brasileira usar.


X

Fica pra Geisy a lição

Desse poeta matuto:

Proteja seu bom guardado

Da cólera dos impolutos,

Guarde bem o tacacá

E só resolva mostrar

A quem gosta do produto.


Miguezim de Princesa

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Moderação

Se você entrar no meu lar, pode entrar do jeito que quiser, usar qualquer roupa, fazer qualquer coisa, ser do jeito que você é. Só não pode matar as formigas, pisar nas plantas, nem passar pelo cachorro sem dizer Bom Dia.





Ahh... e se sempre deixar uma foto, eu ficarei muito feliz (além de mais bonito).

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Paciência


"o mundo vai girando
cada vez mais veloz
a gente espera do mundo
e o mundo espera de nós
um pouco mais de paciência"

***

domingo, 22 de novembro de 2009

Uma BOA PEGADA!

Ãh

Composição: Gabriel O Pensador/Itaal Shur

Eu não sei quem inventou essa mania e nem sei o que seria esse "ãh".
Eu só sei que eu acordei no outro dia e só ouvia todo mundo dizer ãh.
Eu nem sabia que existia essa palavra ou esse nome ou o que quer que seja ãh.
E de repente vi que toda a minha gente enfiou na sua mente o tal do ãh.
Tranqüilamente fui lá na padaria e falei bom dia, responderam ãh.
Comprei um pão e fui ver televisão, só que na programação só tinha ãh.
Fui pro estádio assistir a um futebol e a torcida só gritava: "ãh! ãh!"
Liguei o rádio pra ouvir os comentários e era "ãh-ãh-ãh-ãh-ãh-ãh-ãh".
Cheguei em casa, o meu amigo me ligou, eu disse alô, ele disse ãh.
Ele me falou duma festinha recheada de gatinha, eu disse ah... hmm... Ãh!!
Cheguei na festa e realmente tava bom, mas o som...
Uma garota me deu mole e começamos a conversar: "ah? ãh! ãh..."
Vamos lá pra casa e aí ãh, perguntei se ela ãh, ela veio e "ãh"...

Por isso eu digo "ãh!"
Everybody say "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh!", eu também quero falar... ãh...
Por isso eu digo "ãh!"
Vem dizer comigo: "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh", então eu digo ãh... ah, sei lá!

Fui pra escola e esqueci a minha cola, e na prova eu respondia tudo ãh.
O professor me falou alguma coisa que eu não entendi porque não era ãh.
Voltei pra casa meio ãh, e o guarda me pegou com uma ãh, e falou que eu ia ãh.
"Peraí, seu guarda, eu posso explicar"
- "Então explica!"
- "É que... ãh..."
E o meu pai ficou sabendo e já veio me dizendo que eu era muito ãh.
Eu disse "pai, ãh, pai, mas pai, ãh, pai..."
- "Cê tá me respondendo, meu filho?!"
- "Ô, pai, ãh!!"
Meu pai nunca me escuta e pra mostrar quem é que manda ainda faz aquela cara meio ãh.
Eu resolvi fazer uma banda que é pra ver se alguém me escuta! O nome dela é Ãh.
O nosso som é uma mistura de ãh com ãh, e a nossa postura é ãh!
Acho que vai ser o maior sucesso, mas não sei se vai ser bom fazer sucesso, que o sucesso é meio ãh.
Hoje eu já falei com um, ãh, jornalista, que na hora da entrevista perguntou:
- "Porque 'Ãh'?"
- Ah... Por que 'Ãh'? Ah, Ãh por que ãh!
Se você não entendeu, sinto muito mas ãh...

Refrão

Tava tudo indo muito bem, porque eu só falava ãh, escutava ãh e pensava ãh.
Tudo como manda o figurino, as meninas e os meninos, todo mundo repetindo ãh.
Parecia muita hipocrisia, porque todo mundo repetia e nem sabia o que era "ãh".
Tão fazendo a gente de robô, só não sei quem programou.
Quando eu percebi eu disse: "ô-ôu!"
Foi aí que todo mundo olhou pra mim, só pra ver o quê que eu ia dizer.
Foi aquele olhar assim bem ãh, de quem quer ouvir um "ãh", só que aí em vez de "ãh" eu disse "Be"!
Depois dessa resposta muita gente deu as costas, e até quem me adorava hoje fala que não gosta.
Eu até tentei compreender o "ãh", mas quando eu falei do "Be" ninguém tentou me entender.
É porque pra eles é o "ãh", tem que ser o "ãh", pelo jeito vai ser ãh a vida toda.
Se você quiser saber, depois do B já vem o C, e tem o D e tem o E e com o F eu digo foi.

Por isso eu digo "ãh!"
Everybody say "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh!", eu também quero falar "Be"!
Por isso eu digo "ãh!"
Vem dizer comigo: "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh", então eu digo foi...
Por isso eu digo "ãh!"
Everybody say "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh!", eu também quero falar "Be"!
Por isso eu digo "ãh!"
Vem dizer comigo: "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh", então eu digo Foda-se

Um texto sobre amor, desejo e metades


“(...) porque outrora, no princípio, éramos unos e havia três tipos de humanos: o homem duplo, a mulher dupla e o homem-mulher, isto é, o andrógino. Eram redondos, com quatro braços e quatro pernas e dois rostos numa só cabeça. Vigorosos, sentindo-se completos, decidiram subir ao céu. Foram punidos por Zeus que os cortou pela metade, voltando-lhes o rosto para o lado onde os cortara, deixando-os com os órgãos sexuais voltados para trás. Desde então, cada metade não fez senão buscar a outra e, quando se encontravam, abraçavam-se no frenesi do desejo, procurando a união, morrendo de fome e inanição nesse abraço. Para evitar que a raça dos humanos se extinguisse, Zeus permitiu que Eros colocasse os órgãos sexuais voltados para frente, concedendo-lhes a satisfação do desejo e a procriação. Eros restaurou a unidade primitiva e nos faz buscar nossa metade perdida: os que vieram dos andróginos, amam o sexo oposto, os que vieram dos homens e mulheres duplos, amam os de mesmo sexo. O amor é desejo e unidade e indivisão. Encontrar nossa metade: eis nosso desejo. Ao deus que isto nos propicia, todo nosso louvor.”


Aristófanes

Domingo

Veja meu bem
Que hoje é domingo
Domingo eu não choro
Domingo eu não sofro
Domingo eu sou de paz e alegria
Tristeza hoje eu não estou
Saudade volte outro dia
Domingo eu não sou boa companhia

Se o amor quer me deixar
Me deixe num domingo
Eu não vou reclamar
E posso até achar
Que ficar só é lindo

Domingo a minha vida é o circo
Eu sou a trapezista
Alguém avise a dor,
Que não insista.

Roque Ferreira

Leminski, para CS

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

Paulo Leminski

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Primavera


É primavera!
Embora o mundo lá fora insista em viver no inverno.
A esperança nos espera,
Pra fazer do mundo mais céu e menos inferno.

Os braços já não poderão estar mais cruzados.
O frio se foi, as flores chegaram..
O inverno dos acomodados,
Dá lugar à primavera dos que sonharam.

A força ressurge com voracidade tamanha.
O frio se declina do perfume das flores e da limpidez da água que emana..
O sol brilha de novo
E junto ressurge a alegria do povo.

É primavera, estação das flores,
Mas flores murcham, têm vidas curtas, artificiais
Mas que os amores vençam as dores
E em qualquer estação que o mundo priorize em PAZ.

Primeira mãe, deusa mãe, mãe natura,
Que naturalmente oferece aos humanos sua candura.
Nossa saúde, nosso verde, nosso sustento, mas nosso espelho.
Qualquer desrespeito, não nos vemos mais e o verde vira vermelho...
Dafne Duarte
Vitória da Conquista. Num dia qualquer, de um mês qualquer em 2005.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O baile


Fui a um baile de máscaras
e elas estavam apertadas.

eu sem cordão;
eles de mente amarrada.


Fui a um baile de máscaras
e elas eram horrendas.

eu sem graça;
eles, palhaços de circo


Fui a um baile de máscaras
e tudo soava disfarce

eu sem cara;
eles, descarados


Fui a um baile de máscaras
e todos os sorrisos eram pintados.

-

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A vida das gentes, por Monteiro Lobato


"A vida das gentes neste mundo, Senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia.


Pisca e mama.

Pisca e brinca.

Pisca e ama.

Pisca e cria filhos.

Pisca e geme reumatismos.


Por fim, pisca pela última vez e morre.

- E depois que morre? - perguntou o Visconde.

- Depois que morre vira hipótese. É ou não é?"


(Monteiro Lobato, Memórias de Emília)

domingo, 15 de novembro de 2009

O Natal e a obrigação de ser feliz.



Uma estatística que vi há um tempo – não me recordo nem onde nem quando – denunciava que, na Alemanha, a taxa de suicídio dobrava quando o Natal se aproximava. Espantado com esse dado, peguei-me tentando descobrir a razão pela qual justamente na data em que boa parte da população parecia ficar mais feliz (embora artificialmente, diga-se), justamente nessa época havia o maior número de suicidas. Como decifrar esse aparente contra-senso?

Eu, chato que sou, me propus (porque ninguém merece “propus-me”, né, Rafa?) - me propus a solucionar o mistério.

Os resultados das confabulações de mim para comigo apontaram para uma tese que, a meu ver, - e por mais pretensioso que soe - consegue resumir todo o estilo de vida ocidental; vamos, superficialmente, a ela: a obrigação de ser feliz.

É a insuportabilidade da obrigação de ser feliz que leva os alemães ao suicídio durante o Natal!

E por que no Natal mais que em outras épocas?

Ora, por razões óbvias: nos festejos natalinos a felicidade se mostra mais explícita, ou melhor, as pessoas se preocupam em demonstar que são felizes mais que em outras datas. Sorrisos estampados nos rostos, presentes, árvore, ceia, tudo a compor um cenário perfeito para a felicidade – felicidade precisa de cenário?

“Reunir a família, cear, trocar presentes; pra mim, isso é felicidade”.


Isso é felicidade? Felicidade é?


A felicidade enquanto meta me parece absurdo! Uma busca a la Indiana Jones, meio sem rumo, meio sem objeto. E a qualquer momento, se não correr o suficiente, você pode ser esmagado por uma pedra gigantesca – dinheiro, casamento, carro, viagem! Ter que ser feliz é realmente insuportável.


Se é caminhando que se faz o caminho, por que não simplesmente viver o agora?

“Nós não precisamos saber pra onde vamos, nós só precisamos ir.”

Na contramão do mundo, eu berro: abaixo a felicidade!

A felicidade mata alemães.

Quociente de solidariedade


"Eu era defensor público na época. Não pelo salário ou pela estabilidade do serviço público, como os meus colegas. Não fiz um concurso qualquer, só para conseguir a festejada independência financeira. Eu era defensor porque precisava ser. E até amava o meu trabalho.

Era final de uma tarde de calor insuportável. O meu assitido tinha saído de casa às seis da manhã e perambulado pela cidade o dia inteiro, a pé, óbvio, a cabeça assando debaixo do sol escaldante. Na sala de audiência, o de praxe: o juiz, ao lado do digitador, a promotora de justiça, com sua estagiária e o meu assitido, sentado sozinho, ao lado da minha cadeira, vaga.

Assim que entrei na sala, percebi a situação: todos os presentes estavam muitíssimo incomodados com o mau cheiro do pobre rapaz. Um futum de arranhar as narinas. E ele se encolhia como podia, parecendo tentar se enrolar no próprio corpo, como um tatu-bola, até se tornar praticamente invisível. Seu nome era vergonha.

Entrei, percebi e saí. Agoniado como peixe recém-fisgado, não suportei ficar ali. E me senti muito fraco por isso.

Saí do Fórum e parei na calçada. Dentro da sala de audiência, certamente todos me esperavam para dar início à instrução. Eram já 17 horas e o sol ainda a pino.

Do meu lado, ao pé de uma placa de sinalização de trânsito, um monte de lixo enpestiava o ambiente, com seu cheiro acre de inutilidades humanas. Quem passava por ali, invariavelmente, apertava o nariz com muita força, fugindo daquele desprazer asqueroso.

Fedor. Parecia o cheiro do assistido, pensei. E novamente me senti mal por pensar assim. E não sei se por auto-punição, ou razão outra, cometi essa insanidade. Afrouxei a gravata, abri os primeiros botões da camisa, recolhi um punhado daquele monte de lixo fétido e esfreguei com força pela nuca, peito e axilas.

Arrumei o traje e voltei à sala de audiência. Sentei na cadeira ao lado do meu assitido, me desculpei pelo atraso e pedi que começássemos os trabalhos.

Nem sequer mirei os olhos surpresos (ou agradecidos) daquele réu desgraçado. Eu fazia aquilo porque precisava, não era favor nenhum."

Arnaldo Livard

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Réquiem por um fugitivo


Não que eu tivesse medo. Mas ele era excessivamente pálido. Mesmo sem nunca ter encarado o seu rosto eu já sabia de sua palidez, como sabia de sua frieza sem precisar tocá-lo. Estava ali desde muito tempo, desde antes de mim. Eu o via desde muito pequeno, quando minha mãe abria o guarda-roupa e eu conseguia perceber no meio dos vestidos as suas mãos demasiado longas. No começo não tinha voz para perguntar quem era, o que fazia. E quando finalmente tive voz e tive movimentos, já não era necessária nenhuma pergunta, nenhuma curiosidade. Sabia-o ali, no meio dos vestidos e dos chapéus. Sabia-o ali, pálido e frio, praticamente ausente. Às vezes me comoviam a sua solidão e sua lealdade: nunca vira minha mãe agredi-lo mas, por outro lado, também nunca a vi tomar conhecimento dele. Nem por isso ele solicitava qualquer atenção. Estava apenas ali, tangível e remoto como a parede do fundo do guarda-roupa.

Quando cresci um pouco ganhei um quarto só para mim, o que impôs uma distância maior entre nós. Mesmo assim eu não esquecia dele. Em parte porque seria impossível esquecê-lo, em parte também, principalmente, porque não desejava isso. É verdade, eu o amava. Não com esse amor de carne, de querer tocá-lo e possuí-lo e saber coisas de dentro dele. Era um amor diferente, quase assim feito uma segurança de sabê-lo sempre ali, quando minha mãe saía e eu ficava sozinho ou quando havia tempestade. Mais ou menos como essa coisa que as pessoas são capazes de sentir por um móvel ou um objeto muito antigos. A única diferença era que eu não admitia que ninguém mais pensasse assim. Para ser mais claro: eu tinha ciúme. Nada sei a respeito de sua vida privada, mas às vezes chegava a desconfiar dele com minha mãe. Hoje é a primeira vez que tenho coragem de admitir isso, porque uma coisa terrível aconteceu.

Muitas noites eu ficava tenso na minha cama, procurando ouvir ruídos- certos ruídos- no quarto de minha mãe. Para ser justo, devo dizer que nunca ouvi nada. Claro que de vez em quando alguma madeira estalava no teto, algum rato ensaiava uma corrida furtiva, ou acontecia qualquer outro desses rumores noturnos. São coisas corriqueiras essas, que acontecem, suponho, em qualquer casa- e digo suponho porque nunca vivi em outra casa que não a minha. Mesmo sabendo disso, eu me contraía cheio de suspeita e mágoa. Imaginava-os na cama, fazendo amor, e isso me doía mais, muito mais do que qualquer outra coisa, a não ser o que aconteceu hoje de manhã.

Minha mãe foi muito correta. É verdade que sempre foi viúva, desde que me conheço por gente, mas é verdade também que nunca me tornou cúmplice de sua viuvez. Devia ter seus problemas, claro, mas nunca me tornou participante deles. Ela os resolvia em silêncio, discreta, sabendo que eu sabia, mas sem me impor absolutamente nada. Inclusiva a presença dele, ela não me impôs. Não que o tenha ocultado (e essa atitude me faz ter quase certeza que realmente nada havia entre eles) : abria sem dissímulo a porta do guarda-roupa e eu espiava para dentro sem que ela impedisse ou estimulasse. Também nunca me falou dele. Nem dele nem de outro qualquer, de dentro ou de fora do guarda-roupa. Não que não tivesse confiança em mim, na verdade nunca demonstrou isso- nem o contrário. Embora não nos falássemos, ela sempre foi muito educada, muito gentil. Não lembro de tê-la ouvido falar alguma vez em voz baixa ou em voz terna, ou mesmo em qualquer outra voz, mas isso não importa: o essencial é que ela nunca gritou. E se é verdade que não chegamos a ter amor um pelo outro, é verdade também que não chegamos a ter ódio. Acredito mesmo que tivéssemos descoberto a forma ideal de convivência e comunicação.

A vida era muito dura. Não chegávamos a passar fome ou frio ou nenhuma dessas coisas. Mas era dura porque era sem cor, sem ritmo e também sem forma. Os dias passavam, passavam e passavam, alcançavam as semanas, dobravam as quinzenas, atingiam os meses, acumulavam-se em anos, amontoavam-se em décadas- e nada acontecia. Eu tinha a impressão de viver dentro de uma enorme e vazia bola de gás, em constante rotação. A vida só se tornava mais lenta quando, aproveitando a ausência de minha mãe, eu abria devagarinho a porta do guarda-roupa para vê-lo. Não ousava encará-lo: acreditava que seria necessária uma longa aprendizagem antes de submetê-lo à visão da minha face. Não que ela fosse excessivamente feia ou disforme, não se trata disso. Mas é que não havia no meu rosto nada de peculiar ou de interessante, nada que fosse digno de seu olhar. Ele tinha um olhar feito somente para coisas dignas, esclareço.

Assim, eu me satisfazia em observar seus pés, suas pernas, até um pouco acima dos joelhos onde repousavam, suspensas, aquelas mãos. E isso era espantoso: os pés, as pernas, os joelhos, as mãos. Era tão maravilhosamente espantoso que eu não suportaria olhar mais adiante, seria demasiado para meus pobres olhos que, ao contrário dos dele, foram feitos para o trivial. Seus pés era muito magros e estavam descalços. Tinham magníficas falanges de ossos perfeitos e um detalhe que os diferenciava de quaisquer outros pés – o segundo dedo era maior que o primeiro, e de uma perfeição indescritível, com sua ponta levemente quadrada e sua unha um pouco azul. como se ele fosse anêmico ou sentisse muito frio. Foi pensando nessa segunda hipótese que, um dia, de cabeça baixa, troquei alguns vestidos de lugar, deixando mais próximo dele o casaco de peles de minha mãe. Acho que não adiantou nada, pois no dia seguinte a unha do segundo dedo continuava azulada, com uma pequena diferença: a meia-lua estava um pouco mais estreita. As suas pernas eu não podia ver, havia aquela roupa branca muito comprida, que escondia inclusive os tornozelos. Ainda assim, podia intuir por baixo do tecido leve a delicadeza de sua ossatura, que se confirmava nas mãos, dignas de qualquer poema, de qualquer tela, de qualquer sinfonia. Sei que fico um tanto ridículo falando delas nesse tom, mas não consigo evitá-lo: quando se quer explicar o inexplicável sempre se fica um pouco piegas. Por isso me eximo de descrevê-las. Digo apenas que estavam ali, paradas, e aqueles pés esplêndidos em muito ficavam lhes devendo. Eram essas mãos que povoavam meus sonhos. Meus sonhos eram repletos dessas mãos, que ora me indicavam caminhos, ora me acariciavam os cabelos, ora dançavam tomadas de vida própria. Acordava assustado com minha própria audácia, chegando a desejar que num dos sonhos elas ensaiassem um gesto mais ríspido para que eu pudesse detestá-las ou temê-las. Mas eram sempre doces, e isso nunca aconteceu.

Foi quando minha mãe morreu, ontem à noite. Eu estava deitado no meu quarto quando a ouvi morrendo. Era um som inconfundível: nenhuma das suas caixinhas de música, nenhum dos ruídos noturnos, nenhum de seus amantes conseguira jamais produzir aquele som. Era escuro e rouco como as coisas que não têm depois. Fiquei a escutar por um instante, sem me abalar, pois sabia que ela morreria um dia, como todas as pessoas, e não me atemorizava nem me surpreendia que esse dia fosse ontem, hoje ou amanhã. Depois de escutar durante uns cinco minutos abandonei as flores de cartolina que costumava fazer e fui até seu quarto. Quando cheguei, o som já havia diminuído de intensidade e, quando a toquei, desaparecera por completo. Deduzi que estava morta. Telefonei para o médico, que veio e confirmou minha suspeita, e depois para a funerária, que a encaixotou e levou. Passei a noite mais insone do que de costume. Restávamos, agora, eu e ele. E eu não sabia como tratá-lo, como comunicar a ele o acontecimento. Imaginava que as pessoas como ele fossem difíceis, sensíveis, e ele era tão mais pálido que as gentes que eu costumava ver pela janela que estava realmente confuso.

Hoje de manhã armei-me de toda coragem e abri a porta do guarda-roupa. Ele estava lá, no mesmo lugar. Foi só então que tive a minha suspeita- pois até esse momento não passara de uma suspeita- confirmada. As dúvidas se diluíram e eu tive certeza: tratava-se realmente de um anjo. Não sei se arcanjo ou serafim, mas indubitavelmente, irreversivelmente, inconfundivelmente- um anjo. Olhei-o, então. Acreditei que o momento houvesse chegado, e olhei-o. Confesso que esperava um sorriso ou qualquer outra manifestação dessas de afeto. Mas não houve nada disso. Não pude sequer perceber se era moreno ou louro, castanho ou ruivo. O que aconteceu foi apenas um clarão enorme e um ruído quase ensurdecedor de asas... como se diz mesmo? ...ruflando, é isso: um ruído quase ensurdecedor de asas ruflando. Em seguida saiu pela janela aberta, alcançou os galhos mais altos dos plátanos desfolhados e desapareceu. Julguei ainda ouvir a voz dele dizendo que voltaria, mas não explicou quando. Não sei também se disse isso apenas por gentileza, para me consolar, ou se realmente pretende voltar um dia.

O que nunca pensei é que pudesse ser assim tão vazia uma casa sem um anjo. Dentro de mim existe alguma coisa que espera a sua volta, de repente, não sei se pela janela ou se aparecerá novamente no mesmo lugar. Para prevenir surpresas, tenho deixado sempre abertas todas as janelas e todas as portas de todos os guarda-roupas. Enquanto não chega, preparo duas coroas de flores: uma para o túmulo de minha mãe, outra para o guarda-roupa que ele habitava.


Caio Fernando Abreu.

Deus ataca bonito- para Rafael


"O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando.


Afinam ou desafinam.


Verdade maior. É o que a vida nos ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - dá gosto.


A força dele, quando quer - moço! - me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre.


E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza".


Riobaldo Tatarana, personagem de João Guimarães Rosa em "Grande Sertão: Veredas".

Verdade

Eu quero uma verdade bem, bem verdadeira.
Não adianta uma verdadezinha cheia de suspeitas,
cheia de talvez, de “pode ser que não”, de relatividade.
Quando eu “saber”, eu quero saber de verdade.
Mas e se me chamarem de maluco, arrogante, alucinado?
E isso importa?
Não dizem que cada um é um Universo?
Então, moldo o Meu a minha imagem e semelhança,
enfeite-o com as minhas lembranças, vontades e principalmente
com algumas verdades (mesmo que sejam poucas).
Porque a eterna dúvida também é inimiga da busca.
Se nunca saberei, por que Perguntar?
Se não existisse o mau, nem o bem, por que da Angústia?
Se Ela está aqui é por uma causa justa.
Por que macaco não ia levantar a cabeça, colocar roupa,
inventar dor e culpa do nada.
E hoje me reconheço e não faço isso a partir das minhas dúvidas,
porque são gigantes demais pra eu enxergar-las.
Me reconheço, isso sim, nas minhas certezas, nas minhas verdades.
São poucas, admito, mas são preciosas, têm substância.
Minha imagem é forjada quando faço da certeza minha amiga.
Se descobrir que estava errado: Eba!
Das infinitas possibilidades, já sei que não é uma.
O que não dá é pra ficar nessa zona cinza de conforto,
porque a dúvida também bitola, também limita.
No fundo, no fundo, o cético não passa de um covarde,
que, assim como um cara galinha, nunca se apega a nada de verdade.
E tudo isso por quê? Por medo de quebrar a cara.
Acham que não agüentam a dor de perder um tesouro,
então se privam da delícia de possuir-lo.
Mas isso é fraqueza e eu prefiro as escolhas de coragem.
E assim como consigo me entregar a um amor,
também consigo me entregar a uma idéia.
Faço deles um norte, um ponto de luz em meio à escuridão,
entrego meu coração, minha fé, me boto em risco,
porque Sei (não disse “acredito”)
que se Desapegar de verdade é se Entregar.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Da série: Baixe a bola, humano! (Parte 02)

Dois dedos de cerveja, um de macaco


Na roda de capoeira formada no Jardim dos Namorados, damião alimentava o coro daquela ladainha manjada, marcando na palma de Bimba (é um, dois, três!):

"Paranaê, paranaê, Paraná

Você diz que sabe tudo (Paraná!),

lagartixa sabe mais (Paraná!);
ela sobe na parede (Paraná!),
coisa que você não faz (Paraná!);

Paranaê, paranaê, Paraná!"
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No zoológico de Ondina, aproveitando os minutinhos em que esquecera a tristeza que era ver os bichos enclausurados, damião contemplava (todo abestalhado) os macacos, com seus saltos e demais peripécias inimagináveis, enquanto saboreava o último naco de batata-frita.

O "macaco" (movimento de capoeira que ainda não conseguia executar, embora estivesse treinando havia mais de ano), que era tão mais fácil, não chegava ao chulé das manobras dos bichos dali (nem mesmo aquele todo bonito, feito pelo seu mestre Comprido). Aliás, nem o "macaco" de Pompeu, que era o mais lindo que já vira, fazia frente aos pulos gigantescos dos macacos de Ondina.

Uma flecha desgovernada rompe os seus devaneios. Era a graça do amigo Joe, que fez todo o grupo de amigos cair na gargalhada, impressionados:

"Ó pra lá, rapaz, o macaco metendo o dedo no cu e cheirando! Parece gente mesmo! há há há há há há!"
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A cabeça de damião trabalhava a mil (claro), enquanto o rapaz voltava pra casa, já a noite caída. Lá em cima, no topo do cucuruto, uma bandinha de músicos, (mais berimbau, pandeiro e timbau) tocava baixinho (em plano de fundo) a ladainha da lagartixa. E ele lembrou da aula de biologia e de Van der Waals.

Depois (ou ao mesmo tempo, quem sabe?), refletiu sobre os amigos no zoológico. Todo mundo saiu exaltando o macaco. Não a sua habilidade de subir uma árvore quilométrica em segundos, nem os pulos de três metros que mandavam a Sra. Gravidade de volta às jogatinas de Buraco.

O povo gostou mesmo, pensou damião, da semelhança entre o macaco e o bicho-homem. Sobretudo da sua incrível capacidade de meter o dedo no cu e cheirar.
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domingo, 8 de novembro de 2009

Dois corpos que caem, para Devapi



Por simples acaso, dois desconhecidos encontraram-se despencando juntos do alto do Edifício Itália, no centro de São Paulo.
- Oi - disse o primeiro, no alvoroçado início da queda.- Eu me chamo João. E você?
- Antônio- gritou o segundo, perfurando furiosamente o espaço.
E, só para matar o tempo do mergulho, começaram a conversar.
- O que você faz aqui? – perguntou Antônio.
- Estou me matando- respondeu João.- E você?
- Que coincidência! Eu também. Espero que desta vez dê certo, porque é minha décima tentativa. Há anos venho tentando. Mas tem sempre um amigo, um desconhecido e até bombeiro que impede. Você afinal está se matando por quê?
- Por amor- respondeu João, sentindo o vento frio no rosto.- Eu, que amava tanto, fui trocado por um homem de olhos azuis. Infelizmente só tenho estes corriqueiros olhos castanhos...
- E não lhe parece insensato destruir a vida por algo tão efêmero como o amor? – ponderou Antônio, sentindo a zoada que o acompanhava à morte.
- Justamente. Trata-se de uma vingança da insensatez contra a lógica- gritou João num tom quase triunfante. - Em geral é a vida que destrói o amor. Desta vez, decidi que o amor acertaria contas com a vida!
- Poxa – exclamou Antônio- você fez do amor uma panacéia!
- Antes fosse – replicou João, com um suspiro.- Duvidoso como é, o amor me provocou dores horríveis. Nunca se sabe se o que chamamos amor é desamparo, solidão doentia ou desejo incontrolável de dominação. O que na verdade me seduz é que o amor destrói certezas com a mesma incomparável transparência com que o caos significante enfrenta a insignificância da ordem. Não, o amor não é solução para a vida. Mas é culminância. Morrer por ele me trouxe paz.
Ante o vertiginoso discurso, ambos tentaram sorrir contra a gravidade.
- E você, como se sente? – perguntou João a Antônio.
- Oh, agora estou plenamente satisfeito.
- Então por que busca a morte?
- Bom- respondeu Antônio- me assustou descobrir um fiasco primordial: que a razão tem demônios que a própria razão desconhece. Daí, preferi mergulhar de vez no mistério.
- Sim, da razão conheço demasiado horrores. Mas que mistério é esse tão importante a ponto de merecer sua vida?
- Não sei- respondeu Antônio.- Mistério é mistério.
- Mas morto você não desvendará o mistério!- protestou João.
- Por isso mesmo. O fundamental no mistério é aguçar contradições, e não desvendar. Matar-me, por exemplo, é bom na medida que me torna parte do enigma e, de certo modo, o agudiza. Tem a ver com a fé, que gera energias para a vida. Ou para a história, quem sabe...
- Taí um negócio que perdi: a fé. Deus para mim...- e João engasgou.
- Ora – revidou Antônio vivamente.- A fé nada tem a ver com Deus, que se reduziu a uma pobre estrela anã de energias tão concentradas que já nem sai do lugar. Deus desistiu de entender os homens, e virou também indagador. Sem Deus nem Razão, a única fé possível é mergulhar neste abismo do mistério total.
- Mas para isso é preciso ao menos saber onde está o mistério- insistiu João com os cabelos drapejando ao vento.
- Ué, o mistério está em mim, por exemplo, que me mato para coincidir comigo mesmo. Mas há mistério também em você: seu morrer de amor é o mais impossível ato de fé. Graças a ele, você participa do mistério. Porque se apaixonou pelos abismos.
João olhou com olhos estatelados, ao compreender. E Antônio, que já faiscava na semi-realidade da vertigem, gritou com todas as forças:
- Há sobretudo este mistério maior de estarmos, na mesma hora e local, cometendo o mesmo gesto absurdo e despencando para a mesma incerteza, por puro acaso. Além de cúmplices, a intensidade deste mergulho nos tornou visionários. Você não vê diante de si o desconhecido? É que já estamos perfurando a treva.
E como tudo de fato reluzia, João também ergueu a voz:
- Sim, sim. É espantoso o brilho do absurdo.
- E agora- disse Antônio bem diante do rosto de João- falemos um pouco da permanência. Você gosta dos meus olhos azuis?
Foi quando os dois corpos se estatelaram na Avenida São Luís.

João Silvério Trevisan

abril/1982

Sobre Lula, o analfabeto

TROPICáLIA SOB O SIGNO DE ESCORPIãO

No mesmo dia que Caetano fazia sua entrevista de capa, muito bela como sempre, no “Caderno de Cultura do Estadão”, o Ministro Ecologista Juca Ferreira publicava uma matéria na Folha na sessão Debates. Um texto extraordinariamente bem escrito em torno da Cultura, como Estratégia, iniciada no 1º Governo de Lula ao nomear corajosa e muito sabiamente Gilberto Gil como Ministro da Cultura e hoje consolidada na gestão atual do Ministro Juca. Hoje temos pela primeira vez na nossa história um corpo concreto de potencialização da cultura brazyleira: o Ministério da Cultura, e isso seu atual Ministro soube muito bem fazer, um CQD em seu texto. Por outro lado meu adorado Poeta Caetano, como sempre, me surpreendeu na sua interpretação de Lula como analfabeto, de fala cafajeste, abrindo seu voto pra Marina Silva.

Nós temos muitas vezes interpretações até gêmeas, mas acho caetanamente bonito nestes tempos de invenção da democracia brazyleira, que surjam perspectivas opostas, mesmo dentro deste movimento que acredito que pulsa mais forte que nunca no mundo todo, a Tropicália.

Percebi isto ao prefaciar a tradução em português criolo = brazyleiro do melhor livro, na minha perspectiva, claro, escrito sobre a Tropicália: “Brutality Garden”, Jardim Brutalidade, de Chris Dunn, professor de literatura Brazyleira na Tulane University de New Orleans.

Acho, diferentemente de Caetano, que temos em Lula o primeiro presidente Antropófago brazyleiro, aliás Lula é nascido em Caetês, nas regiões onde foi devorado por índios analfabetos o Bispo Sardinha que, segundo o poeta maior da Tropicália, Oswald de Andrade, é a gênese da história do Brazil. Não é o quadro de Pedro Américo com a 1ª Missa a imagem fundadora de nossa nação, mas a da devoração que ninguém ainda conseguiu pintar.

Lula começou por surprender a todos quando, passando por cima das pressões da política cultural da esquerda ressentida, prometeica, nomeou o Antropófago Gilberto Gil para Ministro da Cultura e Celso Amorim, que era macaca de Emilinha Borba, para o Ministério das relações exteriores, Marina Silva para o meio ambiente e tanta gente que tem conquistado vitórias, avanços para o Brasil, pelo exercício de seu poder-phoder humano, mais que humano.

Phoderes que têm de sambar pra driblar a máquina perversa oligárquica, podre, do Estado brasileiro. Um estado Oligárquico de fato, dentro de um Estado Republicano ainda não conquistado para a “res pública”. Tudo dentro dum futebol democrático admirável de cintura. Lula não para de carnavalizar, de antropofagiar, pro país não parar de sambar, usando as próprias oligarquias.

Lula tem phala e sabedoria carnavalesca nas artérias, tem dado entrevistas maravilhosas, onde inverte, carnavaliza totalmente o senso comum do rebanho. Por exemplo quando convoca os jornalistas da Folha de São Paulo a desobedecer seus editores e ouvir, transmitindo ao vivo a phala do povo. A Interpretação da Editoria é a do Jornal e não a da liberdade do jornalista. Aí , quando liberta o jornalista da submissão ao dono do jornal, é acusado de ser contra a liberdade de expressão. Brilha Maquiavel, quando aceita aliança com Judas, como Dionísios que casa-se com a própria responsável por seu assassinato como Minotauro, Ariadne. É realmente um transformador do Tabu em Totem e de uma eloquência amor-humor tão bela quanto a do próprio Caetano.

Essa sabedoria filosófica reflete-se na revolução cultural internacional que Lula criou com Celso Amorim e Gil, para a política internacional. O Brasil inaugurou uma política de solidariedade internacional. Não aceita a lógica da vendetta, da ameaça, da retaliação. Propõe o diálogo com todos os diabos, santos, mortais, tendo certa ojeriza pelos filisteus como ele mesmo diz. Adoro ouvir Lula falar, principalmente em direto com o público como num Teatro Grego. É um de nossos maiores atores. Mais que alfabetizado na batucada da vida, Lula é um Intérprete dela: a Vida, o que é muito mais importante que o letrismo. Quantos eruditos analfabetos não sabem ler os fenômemos da escrita viva do mundo diante de seus olhos? Eu abro meu voto para a linha que vem de Getúlio, de Brizola, de Lula: Dilma, apesar de achar que está marcando em não enxergar, nisto se parece com Caetano, a importância do Ministério da Cultura no Governo Lula. Nos 5 dedos da mão em que aponta suas metas, precisa saber mais das coisas, e incluir o binômio Cultura & Educação. Quanto a Marina Silva, quando eu soube que se diz criacionista, portanto contra a descriminalização do aborto e da pesquisa com células-tronco, pobre de mim, chumbado por um enfarto grave, sonhando com um coração novo, deixei de sequer imaginar votar nela. Fiz até uma cena na “Estrela Brasyleira a Vagar – Cacilda !!” para uma personagem, de uma atriz jovem contemporânea que quer encarnar Cacilda Becker hoje, defendo este programa tétrico.

Gosto muito de Dilma, como de Caetano, onde vou além do amar, vou pra Adoração, a Santa adorada dos deuses. Acho a afetividade a categoria política mais importante desta era de mudanças. “Amor Ordem e Progresso”. O Amor guilhotinado de nossa Bandeira virou um lema Carandiru: Ordem e Progresso, só.

Apreendi no livro de Chris Dunn que os americanos chamam esta calegoria de laços homossociais, sem conotação direta com o homoerotismo, e sim com o amor a coisas comuns a todos como a sagração da natureza, a liberdade e a Paixão pelo Amor Energia, Santíssima Eletricidade. Sinto que nestas duas pessoas que gosto muito, Caetano e Dilma, as fichas da importância cultural estratégica, concreta, da Arte e da Cultura, do governo Lula, ainda não caíram.

A própria pessoa de Lula é culta, apesar de não gostar, ainda, de ler. Acho que quando tiver férias da Presidência vai decicar-se a estudar e apreender mais do que já sabe em muitas línguas. Até hoje ele não pisou no Oficina. Desejo muito ter este maravilhoso ator vendo nossos espetáculos. Lula chega a hierarquia máxima do Teatro: a que corresponde ao Papa no Catolicismo: o Palhaço. Tem a extrema sabedoria de saber rir de si mesmo. Lula é um escândalo permanente para a mente moralista do rebanho. Um cultivador da vida, muito sabido, esperto. Não é a toa que Obama o considera o político mais popular do mundo.
Caetano vai de Marina, eu vou de Dilma. Sei que como Lula ela também sente a poesia de Caetano, como todos nós, pois vem tocada pelo valor da criação divina dos brazyleiros. Esta “estasia”, Amor-Humor, na Arte, que resulta em sabedoria de viver do brasileiro: Vida de Artista. Não há melhor coisa que Exista!

Lula faz Política Culta e com Arte. Sabe que a Cultura de sobrevivência do povo brasileiro não é Super, é Infra Estrutura. Caetano sabe disso, é uma imensa raiz antenada no rizoma da cultura atual brazyleira renascente de novo, dentro de nós todos mestiços brazileiros. Fico grato a Caetano ter me proporcionado expor assim tudo que eu sinto do que estamos vivendo aqui agora no Brasil, que hoje é um País de Poesia de Exportação como sonhava Oswald de Andrade, que no Pau Brasil, o livro mais sofisticado, sem igual brazyleiro canta:

“Vício na fala
Pra dizerem milho dizem mio
Pra melhor dizem mió
Para telha dizem teia
Para telhado dizem teiado
E vão fazendo telhado”

Zé Celso
SamPã, 6 de novembro
sob o signo de Escorpiãos
exo da cabeça aos pés
minha Lua de Ariano
EVOÉROS

O envelhecer-por Maria Bethânia


“Você vai envelhecendo. Os anos vão passando. A sua voz já está numa outra emissão, o chão do palco que você pisa é diferente. Tudo vai andando. Envelhecer é sempre novidade.(...) Acho uma burrice achar que é repetição e que as coisas vão perdendo não sei o quê. [Envelhecer] é um privilégio. Já imaginou quantas estrelas vão ser descobertas e eu estou viva pra ver? Estar andando no tempo é uma benção.” (Maria Bethânia em entrevista à Folha de São Paulo, Ilustrada, 01/10/2009)

sábado, 7 de novembro de 2009

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Os Pingos da Chuva (*)


Os Pingos da Chuva (*)
(Os Novos Baianos - Pepeu Gomes - Moraes Moreira)

Quando o céu estiver preto
e das nuvens até as sombras assombram. (bis)
É só o reflexo do que está acontecendo.
Só está faltando fósforo. Me dê aí!
Não esqueça que nesse momento
o vento sacode as árvores
e o clima que fica e o ar agitado.
Dizendo tudo o que pode acontecer. Não escureça nem esquente a cabeça.
Eu sei que você tem argumentos de querer:
O sol pra pegar sua praia,
pra bater sua bola.
E a lua pra ver sua mina,
ou só pra ir ali na esquina.
Sem rima, sem rima!
Faça como eu que vou como estou,
porque só o que pode acontecer...
É os pingo da chuva me molhar,
é os pingo da chuva me molhar!
É os pingo da chuva me molhar,
é os pingo da chuva me molhar!


terça-feira, 3 de novembro de 2009

“OS PAIS DEVEM MANTER DIÁLOGO ABERTO COM OS FILHOS”

"Uma mistura lúcida de um pouco daqui e dali...
No Brasil inteiro, o uso de drogas está crescendo entre os jovens do ensino fundamental e médio. Raramente os professores sabem abordar o assunto. Como a política é a de prevenção ao uso, quando um aluno é flagrado, frequentemente é expulso.
“É para não ‘contaminar’ os outros”, critica Denise.
Uma pena. Afinal, é também no contexto escolar, que a gente tem que investir na redução de danos. É importante problematizar a questão, mostrando aos jovens quais são as drogas, seus efeitos e consequências, para no caso do uso, fazê-lo de forma mais consciente.
A droga sozinha não tem efeito demoníaco.
É preciso sempre fazer a sua contextualização. A droga junto com uma pessoa em conflito é que vai facilitar o seu uso.
Depois, dependendo da maneira como essa droga atua na vida daquela pessoa e do seu contexto familiar, é que vai se tornar problemática ou não.
“Por isso, é preciso se dialogar de forma ampla com os filhos”, aconselha Denise.“E se de repente meu filho começar a usar?”“Será que proibir vai ajudar? Será melhor permitir, para saber o que está acontecendo? A família tem de definir a estratégia. Aí, é importante também discutir com um profissional”, diz Denise. “Não há uma recomendação única. Eventualmente, quando o o uso se torna problemático, é preciso até a contenção.”
Paulo Teixeira tem seis filhos: “Os pais devem manter diálogo aberto com os filhos e acompanhá-los nos diferentes momentos de vida. Acredito na educação aberta, na prevenção. Falo a eles dos perigos e espero que me contem o que fazem para que eu possa aconselhá-los”.
Nota 1: Drogas é um tema bastante complexo. Nesta mistura lúcida , estamos (eu e eu mesmo)apenas começando a discussão. Outras virão! Já que esse assunto nos aguça!
Nota 2: É questão de saúde pública.
Nota 3: A psicóloga Denise Serafim, assessora técnica do Ministério da Saúde , se dispôs a responder às dúvidas dos leitores sobre redução de danos, e Paulo Teixeira, colaborador.
Nota 4: não consegui colocar a foto...não deu!
Akele abraço!!!--*

palavra destilada - Graciliano Ramos.

“Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram. Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão, capricho em não usar a borracha. Concluo o trabalho, mas a resma de papel fica muito reduzida. A noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal. Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos remexem latas e embrulhos no guarda-comidas, automóveis roncam na rua. Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisa, absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações novas traço rabiscos que representam uma espada, uma lira, uma cabeça de mulher e outros disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre-diabo. Tipos bestas. Ficam dias inteiros fuxicando nos cafés e se espreguiçando, indecentes. Quando avisto essa cambada, encolho-me, colo-me às paredes como um rato assustado. Como um rato, exatamente. Fujo dos negociantes que soltam gargalhadas enormes, discutem política e putaria.”


Passagem do livro "Angústia" de Graciliano Ramos.Comunista, Nordestino, preso, jornalista, escritor, ateu, testemunha da seara vermelha. Memórias do cárcere. Memórias da seca. Memórias do Nordeste. Sem efeito nem efeite. Sem barrocagem nem adjetivagem. Nunca vi quem domasse melhor a palavra bruta.