quarta-feira, 25 de maio de 2011

O mundo que quero

Aflige-me que o mundo que vive dentro de mim não venha a se realizar tão cedo. Pena! Eu o vejo com clareza, em todas as suas cores resplandecentes. E é bem certo que essa luz é o sol refletido e espalhado pelo chão, por belíssimos, amplos sorrisos. Esse mundo que eu vejo com clareza não padece, como o nosso, de nenhuma escassez, e o sorriso é a única moeda de troca: farta, bela, com ela é possível obter comida, abrigo, amizades, e sortes de prazer às quais faltam palavras ainda.

Eu vejo um mundo onde não tenho que explicar as coisas simples. Pois, veja, as coisas simples são as que mais tomam meu tempo, meu dia. Passo dias a explicar, repetidamente, as verdades que as pessoas refutam pelo medo simples de não saber o que vem depois dela – como uma criança que tem medo do mar, e deixa as ondas lamberem, suavemente, apenas as pontinhas dos dedos.

Imagine ser um professor de matemática e viver em um mundo onde dois e dois nunca chegam a quatro. Ora três, ora cinco; nunca quatro. E não adianta: as pessoas não gostam desse número. Esforçam-se por não vê-lo. Se acaso juntamos quatro laranjas ou quatro maçãs ou quatro porquinhos ou quatro aviões, as pessoas se desviam do assunto das mais diversas maneiras. É um belo malabarismo retórico. Se estão diante de quatro aviões, perguntam se serão mesmo aviões. Argumentam que, apesar de todas as semelhanças, são quatro coisas no mundo completmente distintas porque – ora! – os átomos que numa estão, não estão na outra. Não há nada em comum entre elas.

A mim não importa que sejam coisas distintas ou semelhantes, ou iguais – embora essa palavra seja perigosa – mas que sejam quatro. E que as pessoas sabem, muito bem, contar. E sabem que há quatro aviões, porquinhos, laranjas ou maçãs; eu só quero que admitam. 4! Admitam que sabem contar, e que se acaso não gostam do número, se o escolheram como proscrito da matemática, que seja! Que seja a religião do número 4, mas apenas admitam que vêem quatro aviões, laranjas, porquinhos, maçãs.

Eu sonho com um mundo de pessoas com coragem para admitir que SABEM. SABEM o que comem. SABEM que o defunto jazente em seus pratos não deveria estar ali, mas balindo e trotando pelos campos ensolarados, comendo girassóis, deitando-se ao sol, sobre a relva. SABEM que são cruéis e egoístas; que o prazer fútil do paladar não vale uma vida. Sonho com um mundo onde eu não tenha que explicar por que não há um porco ou uma vaca no meu prato; sonho com um mundo onde seja claro que o leite é sempre acompanhado de lágrimas.

Eu sonho com um mundo onde as mães se compadeçam, e se reconheçam pelos seus olhares. Onde nenhuma vaca tenha de ser apartada do bezerro antes mesmo de dar-lhe o primeiro leite; com um mundo onde as gatas possam banhar a cria antes de que ela seja cruelmente atada a um saco plástico e jogada no lixo; onde as galinhas possam aninhar no calor de suas penas, fetos que chegarão a ser pintos.

Eu sonho com um mundo onde cadelas cuidam de seus filhotes até que, gordos e fortes, caiam das tetas; inchados de tanto mamar. E que essas mesmas cadelas não andarão pelas ruas alquebradas, magricelas, porque o leite que vertem é o próprio corpo que se decompõe e se desfaz para alimentar a prole. Onde uma mãe humana possa acolher no próprio seio o filhote de qualquer animal que porventura precise de socorro; onde todas as fêmeas serão mães de todos os filhotes, numa união tão absoluta que não requeira mais a palavra “mãe”.

Todos os dias sonho com elefantes que desconhecem seus grilhões. E ursos que, devolvidos à floresta, desaprendam dia a dia a dançar. Sonho com chimpanzés que não arreganhem falsos sorrisos na TV, e que falsos sorrisos não se arreganhem na face humana ao ver um touro sofrer até a morte.

Nesse mundo, o toureiro abre caminho, e o touro corre sozinho, feliz, tranqüilo, rumo à sua liberdade; nenhum cachorro será deixado no frio, fora de casa, à própria sorte; as rainhas abelhas serão louvadas com todo o mel que as operárias puderem produzir.

Ursos polares poderão descansar, finalmente, sobre suas calotas polares, sem a preocupação de se desgarrarem em icebergs, sem a preocupação de flutuar a esmo nos mares.

Nenhuma galinha dependurada pelo pé sangrará até morrer afogada no próprio sangue, enquanto este se esvai no frio do abatedouro.

Sonho com um mundo em que as pessoas não sonhem para si mesmas. Que não se desanimem com o futuro, que se bastem em construir para os outros. Sonho com um mundo em que as pessoas são felizes simplesmente pela felicidade que se estampa no rosto do outro, e que assim, felicidade espelhada em felicidade, não importem identidades, individualidades, e todos os caprichos do ego que nos cindem.

Sonho todos os dias com esse mundo onde os porcos que eu não comi vagam chafurdando as areias do tempo. Onde, por fim, nada mais precise ser sonhado, onde tudo esteja simplesmente ao alcance fácil das mãos.


Carmen de Carvalho, publicado em http://vegtemas.org/o-mundo-que-eu-quero/

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