terça-feira, 22 de dezembro de 2009

da série: entre Atómos e deus (4)

Conheça o prazer da dor e a dor do prazer, a derrota da vitória e a vitória da derrota, a vida na morte e a morte na vida...

Então entenda que o amargo é o doce, que a vida é a morte, que o Yin é o Yang, que o mel é o fel, que o cosmos é o Damião, que o universo é o Átomo, que o caçado é o caçador, que o explorador é o explorado, que o amor é o desamor, que eu sou você, que a consciência é a inconsciência, que o avesso é o desavesso, que o doce é o amargo, que a felicidade é o sofrimento, que a pia do banheiro público é o seu amor, que os aglomerados de átomos conscientes destruidores de aglomerados de átomos são suas próprias vítimas: átomos.

E daí, tire suas próprias conclues.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

da série: entre Atómos e deus (3)


“Eu sei que o mais puro gosto do mel é apenas defeito do fel”

(Raul Seixas / Marcelo Motta – Eu Sou Egoísta)

Desavesso

Não espere que o tempo cure, porque ele não cura. No máximo, anestesia. O tempo torna aceitável o que antes não era, mas a fonte continua viva, mesmo que com menos fogo. E com o tempo, você vai se tornado uma coisa disforme, irreconhecível, porque só é um monte de feridas mal curadas. Você e sua dor vão se tornando uma coisa só. Os momentos bons vão se tornando apenas os raros momentos de esquecimento anestesiado. Então você procura mais anestésicos. Enche a cara, esquece, mas a natureza é sábia, inventou a ressaca. E aí você vai curando ressaca com mais ressaca. Arruma um novo amor, arruma novos amigos, encontra novas drogas, novas idéias, novas “fés”, mas a euforia do novo passa e você é viciado em euforia, porque euforia anestesia e você não se agüenta de cara.

Um dia você entende isso, então pára. Se for um fraco, sucumbe (ainda não era a sua vez), se tiver força, salta. O círculo se torna nítido. Você deixa os anestésicos pros finais de semana e contempla, sem cinismo, os seus demônios. Percebe que tudo dói, que você é o avesso, do avesso, do avesso de você mesmo. Tudo o que fez até hoje foi apenas instinto (carne consciente tentando evitar a dor e a morte) e que o instinto só fez de você algo que você não é, que você nunca quis ser. Sua carne fraca muitas vezes suplica pra você esquecer, pra voltar pro seu lugar de “origem”. Possivelmente voltará algumas vezes, mas o “estrago” já foi feito: pra você, agora, ou é liberdade, ou é depressão.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Pra descontrair - "ROLA DE PLÁSTICO"


Invenção de um arquiteto português.

Ps: Para um "português" querido.

Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros
Por mês...

Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso
Na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar
Um Corcel 73...

Eu devia estar alegre
E satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado
Fome por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa...

Ah!
Eu devia estar sorrindo
E orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa...

Eu devia estar contente
Por ter conseguido
Tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado...

Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto "e daí?"
Eu tenho uma porção
De coisas grandes prá conquistar
E eu não posso ficar aí parado...

Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Prá ir com a família
No Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos...

Ah!
Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro
Jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco...

É você olhar no espelho
Se sentir
Um grandessíssimo idiota
Saber que é humano
Ridículo, limitado
Que só usa dez por cento
De sua cabeça animal...

E você ainda acredita
Que é um doutor
Padre ou policial
Que está contribuindo
Com sua parte
Para o nosso belo
Quadro social...

Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada
Cheia de dentes
Esperando a morte chegar...

Porque longe das cercas
Embandeiradas
Que separam quintais
No cume calmo
Do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora
De um disco voador...


Eu que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada
Cheia de dentes
Esperando a morte chegar...

Porque longe das cercas
Embandeiradas
Que separam quintais
No cume calmo
Do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora
De um disco voador...


(Raul Santos Seixas)

sábado, 19 de dezembro de 2009

com outros foi mulher.


uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel
uma mulher, uma beleza que me aconteceu.
esfregando sua pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu
me falou que o mal é bom e o bem é cruel.
enquanto os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu,
ela me conta, sem certeza, tudo que viveu
que gostava de política e mil novecentos e sessenta e seis
e hoje dança no frenetic dancing days

Ela me conta que era atriz e que trabalhou no "Hair"
com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher
que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor
e espalhado muito prazer e muita dor.

Mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar
porque ela vai ser o que quis, inventando um lugar
onde a gente e a natureza vivam sempre em comunhão
e a tigresa possa mais que um leão.



Tigresa - Caetano

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Da séria: cínico, quem não é? (2)

Eita plantinha danadinha!

A arruda (Furta vaelorens L, Furta desviandis, Furta noperceberum, Furta enumminutes, Furta oqueteveris) é uma planta da família das Furtáceas.

Também é denominada como arruda-fedorenta, arruda-da-bancada, arruda-dos-plenários, ruta-de-cheiro-forte.

Subarbusto muito cultivado em todo o mundo e no Brasil dessa espécia em todo canto dá, no Distrito Federal então...

Devido às suas
folhas fortemente armadas e aromáticas, seu cultivo está disseminado quase como erva daninha, o que atrae muitos parasitas.

Atinge muitos km em seu raio de influência, apresentando haste lenhosa, pegajosa, grudenta, ramificada desde a base. As folhas são alternas, pecioladas, carnudas, carecas, compostas até com um visgo, que serve para facilitar a aproximação de novos parasitas. As
flores são pequenas e amareladas. O bolso é capsular, de quatro ou cinco lobos, salientes e rugosos, abrindo-se inferior e inteiramente em quatro ou cinco meias.

A
medicina popular indica-a nos casos de supressão do rendimento mensal ordinário, por seu efeito fortemente emenagogo. Também possui efeitos abortivos.

Suas
folhas são utilizadas como chá, com propriedades calmantes, podendo gerar como efeito colateral mudez temporária.....


...



Empregando-se as folhas secas em pó, combate os piolhos. Que cabelo?

Uma crença popular de raiz africana, remontando aos tempos coloniais, dita que os homens usem um pequeno galho de folhas por cima de uma orelha, ou que um galho das mesmas seja mantida no ambiente, para espantar maus olhadores.

Preferida das empreteiras, publicitárias, empresas e rezadeiras, é uma planta poderosa para descarga de íon$ po$itivo$ e de vibração emitida por inveja ou feitiço, sem contar a do DEMônio.

Misturadas com outras ervas ou flores é um precioso componente de banhos mágicos para o sucesso, satisfação econômica e atração do que se busca.


E ninguém dá nada pra essa plantinha...é cínica ou não é?




sábado, 12 de dezembro de 2009

Da série: cínico, quem não é? (1)



Quantas espécies de cínicos vocês acham que existem?
Afinal, em que tipo de cínico você se encaixa?
Ops!
Você é cínico?
Vocês são cínicos?
Quem não é, né?

Afinal de contas, todos somos cínicos.
Pelo menos eu sou!
A questão é que: existem tantos tipos de cínicos quantos sacos de batatas no mundo. E isso que é legal, cada um tem seu próprio cinismo, sua maneira de agir e “gastar”, o que também pode parecer um pouco perigoso, mas nada que ultrapasse o normal, pois afinal o normal é tão banal...

Por exemplo, existem vários tipos de cínicos, esse aí em cima /\ “largadão” na escadaria ou “de boréstia” – como diria Seu Nico – é o filósofo Diógenes, também conhecido como filósofo cínico, muito amigo na época do Deus Baco...

Em Atenas tornou-se discípulo de Antístenes, o fundador da Escola Cínica que preconizava o desprezo por bens materiais e conforto pessoal. (fonte: Wikipédia).

Tudo isso depois de ter sido acusado juntamente com seu pai, um banqueiro, de alterar moedas públicas. Imagine só que safado!

Pelo menos, Dio se regenerou, se arrependeu e passou a curtir uma vida mais tranqüila, sem se apegar a bens materiais, priorizando o conforto pessoal. Pense aí que vida boa. Ficou tão bom nisso que virou filósofo e ajudou a fundar uma linha teleológica cínica.

Sem sombras de dúvidas, esse é o perfeito caso do cidadão que ascendeu e conseguiu a tão desejada: boêmia sustentável. É isso mesmo boêmia sustentável - o sustento provindo da maneira como vocês curtem as suas vidas ou provindo da forma como vocês têm prazer. Que maravilha!

Gostaria de registrar a minha admiração e dar o devido valor, olvidado, ao filósofo cínico! Que desde tempos remotos já quebrava tabus, sentava nas escadas e acampava nas reitorias. Influenciador de incontáveis tendências, correntes, pessoas, personalidades, velhos, novos, baianos, músicos, artistas fenomenais...etc...

Valeu Dio...nós gostamos de você!



sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

da série: entre Atómos e deus (2)

Por que aglomerados Conscientes de átomos destroem a consciência de outros aglomerados de átomos Conscientes?

da série: entre Atómos e deus (1)

Na próxima vez que você rezar, reze para os átomos que formam o corpo da pessoa que você mais ama no mundo. Num outro dia, reze para os átomos que formam a pia do banheiro de um lugar público qualquer e, num terceiro dia, reze novamente para os átomos que formam o corpo da pessoa que você mais ama no mundo: o amor é um comportamento atômico bem esquisito.

Que Fim Levaram Todas As Flores? - P/ CS

Que fim levaram todas as flores?
Que o preto velho me contava
Que fim levaram todas as flores?
Que a rainha louca não gostava
Que a lapela morta carregava
Que o olhar de todos me lembrava

Que fim levaram todas as flores?
Que qualquer coisa não estragava
Em qualquer dia que podia
Com grande amor e alegria
Que fim levaram todas as flores?
Que a criança às vezes me pedia

(Que fim levaram todas as flores? - Secos e Molhados)

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

nunca mais o barão pisou na terra

Sou palhaço do circo sem futuro
Um sorriso pintado a noite inteira
O cinema do fogo
Numa tarde embalada de poeira
Circo pegando fogo
Palhaçada.
Circo pegando fogo
E a lona rasgada no alto
No globo os artistas da morte
E essa tragédia que é viver
E essa tragédia.
Tanto amor que fere e cansa.


- José Paes da Lira.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Seja Bem Vinda!

Aos trinta e três anos de idade, numa tarde cinza de domingo, bateu-me à porta uma senhora que se identificou como Angústia das Graças.

Disse-me que seu pai, Feliciano Dias das Graças, filho de Temporino de Jesus e Maria das Dores, deu-lhe esse nome porque ela tinha cara de sorte. Disseram-lhe: “com aquela linda carinha de sorte, não tinha como querer nome melhor”.

Meu primeiro impulso foi inventar uma desculpa qualquer, dizer que iria sair pra comer pipocas com amigos, mas a senhora era esperta:

_Sem desculpas meu filho, se nunca deixar eu entrar na sua casa, meus filhos continuarão importunando você. Nem com a morte, vão deixar-lhe em paz.

Diante do profetismo seguro daquela graciosa senhora e do imenso medo que eu tinha de seus filhos, velhos conhecidos meus, convidei-a para entrar, ofereci um lugar pra sentar, um pedaço de bolo de chocolate que sobrou do meu último aniversário, mas ela não aceitou.

_Não gosto mais de coisas que lembrem o tempo. Meu pai morreu e sinto falta dele.

Encaixei-me numa daquelas poltronas velhas da minha sala e comecei a conversa com uma voz cansada e medrosa:

_Então, o que a senhora faz aqui?

_É exatamente o que eu queria saber? Por que me chama tanto? Por que me procura tanto, mas nunca ouve o que digo? – falou-me com uma expressão amorosa e preocupada.

Fiquei algum tempo parado, sem falar nada. Fui até o meu quarto, peguei uns caderninhos velhos que estavam perdidos dentro de um armário mais velho ainda, uns comprimidos dourados que guardava pra uma emergência qualquer e um livro profético que não lembro mais do nome. Foi difícil segurar todos aqueles objetos com apenas duas mãos, mas levei-os até a minha sala grande.

_Estão aqui.

A senhora os apanhou com calma, colocou-os dentro de uma sacola florida e levantou-se. Advertiu-me de que não era saudável mais fazer aquilo. Deu-me um cartão de visita e foi até a porta.

_Na próxima vez, ligue-me. Verá que tudo será mais fácil.

A senhora virou-se e foi embora.

(...)

Foi uma ótima tarde. Bem triste, é verdade, mas ótima, já que depois dela nunca mais temi a visita daquela senhora.



Blues da Piedade

Composição: Roberto Frejat/Cazuza

"Agora eu vou cantar pros miseráveis
Que vagam pelo mundo derrotados
Pra essas sementes mal plantadas
Que já nascem com cara de abortadas

Pras pessoas de alma bem pequena
Remoendo pequenos problemas
Querendo sempre aquilo que não têm

Pra quem vê a luz
Mas não ilumina suas minicertezas
Vive contando dinheiro
E não muda quando é lua cheia

Pra quem não sabe amar
Fica esperando
Alguém que caiba no seu sonho
Como varizes que vão aumentando
Como insetos em volta da lâmpada

Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem

Quero cantar só para as pessoas fracas
Que tão no mundo e perderam a viagem
Quero cantar o blues
Com o pastor e o bumbo na praça

Vamos pedir piedade
Pois há um incêndio sob a chuva rala
Somos iguais em desgraça
Vamos cantar o blues da piedade

Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Pra essa gente careta e covarde
Vamos pedir piedade
Senhor, piedade
Lhes dê grandeza e um pouco de coragem"

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Toquem Raul!

Não pare na pista
É muito cêdo
Pra você se acostumar
Amor não desista
Se você pára
O carro pode te pegar
Bibi! Fonfon! Pepê!
Se você pára
O carro pode te pegar...
Você me xingando
De louco pirado
E o mundo girando
E a gente parado
Meu bem me dê a mão
Que eu vou te levar
Sem carro e sem mêdo
Pr'o guarda multar
Meu bem me dê a mão
Que eu vou te levar
Sem carro e sem mêdo
Prá outro lugar...
Não pare na pista
É muito cêdo
Prá você se acostumar
Amor não desista
Se você pára
O carro pode te pegar
Bibi! Fonfon! Pepê!
Se você pára
O carro pode te pegar
Mamãe! Papai! Irmão!
Se você pára
O carro pode te pegar
Vovó! Nené! Lili!
Se você pára
O carro pode te pegar...
(Não Pare na Pista - Raul Seixas / Paulo Coelho)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O pé de pau!



"Façam completo silêncio, paralisem os negócios
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
"

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Ser ou não ser civilizado...

Civilizado?

Por que digo "civilizado"?

Porque civilizado é quem se opõe à barbárie e a deixa para trás.

Ora, o bárbaro é aquele que, guiando-se por preconceitos jamais questionados, não tolera, no universo das possibilidades vitais dele mesmo e dos demais membros da sua comunidade - ou até da humanidade - qualquer comportamento alternativo: aquele que busca impor, a ferro e fogo, a sua maneira de ser a todos os demais, tentando escravizar ou eliminar aqueles que não se conformem.

Em oposição a isso, civilizado é quem é capaz de fazer uso da razão para criticar todos os preconceitos, inclusive aqueles em que foi criado. No fundo, a civilização é o ceticismo metódico. O civilizado sabe que é por acaso -porque por acaso nasceu neste e não naquele país, nesta e não naquela classe social, nesta e não naquela família- que cada qual tem os hábitos, os valores, as crenças, os preconceitos que tem; sabe, portanto, que nenhum conjunto de preconceitos é, por direito, superior a nenhum outro.

Sabendo disso, o civilizado sabe também que o único motivo que pode racionalmente ser invocado para negar a alguém o direito a se comportar de determinada maneira é que tal comportamento feriria os iguais direitos de outras pessoas.

A lei da gravidade, por exemplo, não diz que todos os corpos que têm massa devem se atrair de determinado modo e sim que se atraem desse modo. Se for descoberto que determinados corpos têm massa e, no entanto, não se atraem do modo previsto, não serão esses corpos que estarão errados, mas a lei da gravidade. Assim também, se uma "lei natural" diz que os indivíduos do mesmo sexo não sentem atração erótica uns pelos outros, basta abrir os olhos para ver que essa "lei" está errada, ou melhor, não é lei, não existe.

É ou não é?

terça-feira, 1 de dezembro de 2009


"— Olá, tem alguém aí?
Serve eu?
— Quem é você?
Eu sou você!
— Como assim?
Eu sou você no mundo das letras.
— Letras? O que é isso?
É a forma que eu tenho no seu mundo.
— Quer dizer que eu sou letras?
Sim e não. Você também tem pernas e braços.
— O que é isso?
Não dá pra explicar com letras.
— Por que não?
Porque não existe no seu mundo
— Mas se eu sou você!?
Você sou eu reduzido.
— Reduzido?
Reduzido a letras.
— Lá vem você com essa história de novo!
Ué! Foi você quem começou!
— Mas se eu sou você, como posso ter começado?
Não pode.
— Então quem começou?
Fui eu.
— Mas cadê o meu direto de escolha?
Está aqui, comigo.
— Olha, se você for embora, eu continuo. Certo?
Certo.
— Então sou mais do que você, pois você passa, e eu fico!
Quem disse isso?
— Você disse!
O que fica é o que fui, não o que sou.
— E será que posso conhecer você?
Claro que pode!
— Como faço isso?
Livre-se do travessão.
— Não consigo. Tenho medo!
Não pode ter medo! Você sou eu. Lembra?
— É mesmo! E você não tem medo?
Medo de quem?
Pronto. Tirei! E aí. Saiu?
Saiu.
Mas não percebi nada.
Pois é!
Quer dizer que agora somos um?
Sempre fomos."

domingo, 29 de novembro de 2009

Diálogo com o peixe (7)


"Nunca vi maior idiotice do que o sujeito se deixar levar pelo medo, se é uma coisa que só tá na sua própria cabeça. Vai perder pra você mesmo?"



Diálogo com o peixe (6)


"Não existe regra mais coitada do que a Gramática"

e

"Ninguém tá se entendendo"
(ou "Casa!")



Diálogo com o peixe (5)


"Não é tão fácil se convencer de ser só gota, quando se sabe ser piscina" *

ou

"Se eu posso ser pedra, por que não posso ser Deus?"


* O porquê da incoerência (ou da angústia pela covardia).

Diálogo com o peixe (4)


"A percepção nada mais é do que uma
gressão ao óbvio" *



* Para JAF, que me ouve sempre com paciência.

Diálogo com o peixe (3)


"O sonho é uma prova diária daquilo que a gente esquece rapidamente, veste a roupa e 'volta à realidade'"


Diálogo com o peixe (2)



"É (quase) impossível convencer o meu eu do sonho de que ele não está transando com Angelina Jolie [*]"

Mas...

"Se o meu eu do sonho 'perceber' que não está transando com Angelina Joulie, tudo acaba: ele e o mundo dele. Eu acordo, ele puf! [*]"


Diálogo com o peixe (1)


"No manicômio, os lúcidos gritam suas loucuras"


sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Quer um conselho? Vá pensar!!!


Tudo começou...quando uma garotinha com as pontas muito bem aparadas e com a bochecha esquerda mais rosada do que a direita, se aprochegou pra prosear um pouco, meio ressabiada:

- Que cê tem moça?
- Qual seu problema menininha?
- Você tem um problema?
- Na verdade, o que é o problema? neh!
- Pense...você tem algum problema agora?
- Que horas são? Pense agora...nesse exato momento, nesse minuto...você tem algum problema presente?

...

- Viuh...?
- Não existem problemas presentes.
- Os problemas são todos futuros?
- E o que é o futuro?
- Quem souber morre! (risos)

- A questão é que, não existem problemas sem solução.
- Boa ou ruim sempre há solução.
- Positivo ou negativo...sim ou não?
- Concorda?

- Então, qual a melhor coisa que você pode fazer pra resolver os seus problemas?
- Pensar!
- Pra resolver da melhor maneira possível.
- Lógico!
- Logo: “problema é algo que você tem que pensar”!
- Prefiro até encarar assim, fala-se “algo que você tem que pensar”...simples...sem drama!
- Só que agora, quando digo problemas, não me refiro só ao seu problema...mas aos problemas de todos!
- Pense de novo aih...
- Tem coisa mais importante do que a sua vida e a vida dos outros seres?

...

- Claro que não! (alguém discorda?)
- Até a Carla Magna fala disso.
- Então...minha filha...vá pensar sobre as melhores soluções pra você e para o mundo!
- Pegue uma tarde toda...deite sua cabeça no travesseiro...e pense!
- Agora pense mesmo...não vá dormir não!
- Não vamos dormir!
- Sabe porquê?
- Esse é o objetivo.
- Simplesmente impedir que você pense ou que você tenha tempo pra pensar!
- Você já percebeu que você nunca tem tempo pra resolver os seus problemas?
- Imagine os do mundo.
- E o pior, quando você consegue resolver, é o sistema que “resolve”.
- Mas não deixe isso acontecer.
- Sabe como?
- Só te digo uma coisa....

...

- Quer um conselho? Vá pensar!

...

- Mas eu só queria saber a data da prova...você sabe?

Uma burca para Geisy


I

Quando Geisy apareceu

Balançando o mucumbu

Na Faculdade Uniban,

Foi o maior sururu:

Teve reza e ladainha;

Não sabia que uma calcinha

Causava tanto rebu.


II

Trajava um mini-vestido,

Arrochado e cor de rosa;

Perfumada de extrato,

Toda ancha e toda prosa,

Pensou que estava abafando

E ia ter rapaz gritando:

“Arrocha a tampa, gostosa!”


III

Mas Geisy se enganou,

O paulista é acanhado:

Quando vê lance de perna,

Fica logo indignado.

Os motivos eu não sei,

Mas pra passeata gay

Vai todo mundo animado!


IV

Ainda na escadaria,

Só se ouvia a estudantada

Dando urros, dando gritos,

Colérica e indignada

Como quem vai para a luta,

Chamando-a de prostituta

E de mulherzinha safada.


V

Geisy ficou acuada,

Num canto, triste a chorar,

Procurou um agasalho

Para cobrir o lugar,

Quando um rapaz inocente

Disse: “oh troço mais indecente,

Acho que vou desmaiar!”


VI

A Faculdade Uniban,

Que está em último lugar

Nas provas que o MEC faz,

Quis logo se destacar:

Decidiu no mesmo instante

Expulsar a estudante

Do seu quadro regular.


VII

Totalmente escorraçada,

Sem ter mais onde estudar,

Geisy precisa de ajuda

Para a vida retomar,

Mas na novela das oito

É um tal de molhar biscoito

E ninguém pra reclamar.


VIII

O fato repercutiu

De Paris até Omã.

Soube que Ahmadinejad

Festejou lá no Irã,

Foi uma festa de arromba

Com direito a carro-bomba

Da milícia Talibã.


IX

E o rico Osama Bin Laden,

Agradecendo a Alá,

Nas montanhas cazaquistãs

Onde foi se homiziar

Com uma cigana turca,

Mandou fazer uma burca

Para a brasileira usar.


X

Fica pra Geisy a lição

Desse poeta matuto:

Proteja seu bom guardado

Da cólera dos impolutos,

Guarde bem o tacacá

E só resolva mostrar

A quem gosta do produto.


Miguezim de Princesa

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Moderação

Se você entrar no meu lar, pode entrar do jeito que quiser, usar qualquer roupa, fazer qualquer coisa, ser do jeito que você é. Só não pode matar as formigas, pisar nas plantas, nem passar pelo cachorro sem dizer Bom Dia.





Ahh... e se sempre deixar uma foto, eu ficarei muito feliz (além de mais bonito).

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Paciência


"o mundo vai girando
cada vez mais veloz
a gente espera do mundo
e o mundo espera de nós
um pouco mais de paciência"

***

domingo, 22 de novembro de 2009

Uma BOA PEGADA!

Ãh

Composição: Gabriel O Pensador/Itaal Shur

Eu não sei quem inventou essa mania e nem sei o que seria esse "ãh".
Eu só sei que eu acordei no outro dia e só ouvia todo mundo dizer ãh.
Eu nem sabia que existia essa palavra ou esse nome ou o que quer que seja ãh.
E de repente vi que toda a minha gente enfiou na sua mente o tal do ãh.
Tranqüilamente fui lá na padaria e falei bom dia, responderam ãh.
Comprei um pão e fui ver televisão, só que na programação só tinha ãh.
Fui pro estádio assistir a um futebol e a torcida só gritava: "ãh! ãh!"
Liguei o rádio pra ouvir os comentários e era "ãh-ãh-ãh-ãh-ãh-ãh-ãh".
Cheguei em casa, o meu amigo me ligou, eu disse alô, ele disse ãh.
Ele me falou duma festinha recheada de gatinha, eu disse ah... hmm... Ãh!!
Cheguei na festa e realmente tava bom, mas o som...
Uma garota me deu mole e começamos a conversar: "ah? ãh! ãh..."
Vamos lá pra casa e aí ãh, perguntei se ela ãh, ela veio e "ãh"...

Por isso eu digo "ãh!"
Everybody say "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh!", eu também quero falar... ãh...
Por isso eu digo "ãh!"
Vem dizer comigo: "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh", então eu digo ãh... ah, sei lá!

Fui pra escola e esqueci a minha cola, e na prova eu respondia tudo ãh.
O professor me falou alguma coisa que eu não entendi porque não era ãh.
Voltei pra casa meio ãh, e o guarda me pegou com uma ãh, e falou que eu ia ãh.
"Peraí, seu guarda, eu posso explicar"
- "Então explica!"
- "É que... ãh..."
E o meu pai ficou sabendo e já veio me dizendo que eu era muito ãh.
Eu disse "pai, ãh, pai, mas pai, ãh, pai..."
- "Cê tá me respondendo, meu filho?!"
- "Ô, pai, ãh!!"
Meu pai nunca me escuta e pra mostrar quem é que manda ainda faz aquela cara meio ãh.
Eu resolvi fazer uma banda que é pra ver se alguém me escuta! O nome dela é Ãh.
O nosso som é uma mistura de ãh com ãh, e a nossa postura é ãh!
Acho que vai ser o maior sucesso, mas não sei se vai ser bom fazer sucesso, que o sucesso é meio ãh.
Hoje eu já falei com um, ãh, jornalista, que na hora da entrevista perguntou:
- "Porque 'Ãh'?"
- Ah... Por que 'Ãh'? Ah, Ãh por que ãh!
Se você não entendeu, sinto muito mas ãh...

Refrão

Tava tudo indo muito bem, porque eu só falava ãh, escutava ãh e pensava ãh.
Tudo como manda o figurino, as meninas e os meninos, todo mundo repetindo ãh.
Parecia muita hipocrisia, porque todo mundo repetia e nem sabia o que era "ãh".
Tão fazendo a gente de robô, só não sei quem programou.
Quando eu percebi eu disse: "ô-ôu!"
Foi aí que todo mundo olhou pra mim, só pra ver o quê que eu ia dizer.
Foi aquele olhar assim bem ãh, de quem quer ouvir um "ãh", só que aí em vez de "ãh" eu disse "Be"!
Depois dessa resposta muita gente deu as costas, e até quem me adorava hoje fala que não gosta.
Eu até tentei compreender o "ãh", mas quando eu falei do "Be" ninguém tentou me entender.
É porque pra eles é o "ãh", tem que ser o "ãh", pelo jeito vai ser ãh a vida toda.
Se você quiser saber, depois do B já vem o C, e tem o D e tem o E e com o F eu digo foi.

Por isso eu digo "ãh!"
Everybody say "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh!", eu também quero falar "Be"!
Por isso eu digo "ãh!"
Vem dizer comigo: "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh", então eu digo foi...
Por isso eu digo "ãh!"
Everybody say "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh!", eu também quero falar "Be"!
Por isso eu digo "ãh!"
Vem dizer comigo: "ãh!"
Se todo mundo fala "ãh", então eu digo Foda-se

Um texto sobre amor, desejo e metades


“(...) porque outrora, no princípio, éramos unos e havia três tipos de humanos: o homem duplo, a mulher dupla e o homem-mulher, isto é, o andrógino. Eram redondos, com quatro braços e quatro pernas e dois rostos numa só cabeça. Vigorosos, sentindo-se completos, decidiram subir ao céu. Foram punidos por Zeus que os cortou pela metade, voltando-lhes o rosto para o lado onde os cortara, deixando-os com os órgãos sexuais voltados para trás. Desde então, cada metade não fez senão buscar a outra e, quando se encontravam, abraçavam-se no frenesi do desejo, procurando a união, morrendo de fome e inanição nesse abraço. Para evitar que a raça dos humanos se extinguisse, Zeus permitiu que Eros colocasse os órgãos sexuais voltados para frente, concedendo-lhes a satisfação do desejo e a procriação. Eros restaurou a unidade primitiva e nos faz buscar nossa metade perdida: os que vieram dos andróginos, amam o sexo oposto, os que vieram dos homens e mulheres duplos, amam os de mesmo sexo. O amor é desejo e unidade e indivisão. Encontrar nossa metade: eis nosso desejo. Ao deus que isto nos propicia, todo nosso louvor.”


Aristófanes

Domingo

Veja meu bem
Que hoje é domingo
Domingo eu não choro
Domingo eu não sofro
Domingo eu sou de paz e alegria
Tristeza hoje eu não estou
Saudade volte outro dia
Domingo eu não sou boa companhia

Se o amor quer me deixar
Me deixe num domingo
Eu não vou reclamar
E posso até achar
Que ficar só é lindo

Domingo a minha vida é o circo
Eu sou a trapezista
Alguém avise a dor,
Que não insista.

Roque Ferreira

Leminski, para CS

isso de querer
ser exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

Paulo Leminski

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Primavera


É primavera!
Embora o mundo lá fora insista em viver no inverno.
A esperança nos espera,
Pra fazer do mundo mais céu e menos inferno.

Os braços já não poderão estar mais cruzados.
O frio se foi, as flores chegaram..
O inverno dos acomodados,
Dá lugar à primavera dos que sonharam.

A força ressurge com voracidade tamanha.
O frio se declina do perfume das flores e da limpidez da água que emana..
O sol brilha de novo
E junto ressurge a alegria do povo.

É primavera, estação das flores,
Mas flores murcham, têm vidas curtas, artificiais
Mas que os amores vençam as dores
E em qualquer estação que o mundo priorize em PAZ.

Primeira mãe, deusa mãe, mãe natura,
Que naturalmente oferece aos humanos sua candura.
Nossa saúde, nosso verde, nosso sustento, mas nosso espelho.
Qualquer desrespeito, não nos vemos mais e o verde vira vermelho...
Dafne Duarte
Vitória da Conquista. Num dia qualquer, de um mês qualquer em 2005.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O baile


Fui a um baile de máscaras
e elas estavam apertadas.

eu sem cordão;
eles de mente amarrada.


Fui a um baile de máscaras
e elas eram horrendas.

eu sem graça;
eles, palhaços de circo


Fui a um baile de máscaras
e tudo soava disfarce

eu sem cara;
eles, descarados


Fui a um baile de máscaras
e todos os sorrisos eram pintados.

-

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A vida das gentes, por Monteiro Lobato


"A vida das gentes neste mundo, Senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia.


Pisca e mama.

Pisca e brinca.

Pisca e ama.

Pisca e cria filhos.

Pisca e geme reumatismos.


Por fim, pisca pela última vez e morre.

- E depois que morre? - perguntou o Visconde.

- Depois que morre vira hipótese. É ou não é?"


(Monteiro Lobato, Memórias de Emília)

domingo, 15 de novembro de 2009

O Natal e a obrigação de ser feliz.



Uma estatística que vi há um tempo – não me recordo nem onde nem quando – denunciava que, na Alemanha, a taxa de suicídio dobrava quando o Natal se aproximava. Espantado com esse dado, peguei-me tentando descobrir a razão pela qual justamente na data em que boa parte da população parecia ficar mais feliz (embora artificialmente, diga-se), justamente nessa época havia o maior número de suicidas. Como decifrar esse aparente contra-senso?

Eu, chato que sou, me propus (porque ninguém merece “propus-me”, né, Rafa?) - me propus a solucionar o mistério.

Os resultados das confabulações de mim para comigo apontaram para uma tese que, a meu ver, - e por mais pretensioso que soe - consegue resumir todo o estilo de vida ocidental; vamos, superficialmente, a ela: a obrigação de ser feliz.

É a insuportabilidade da obrigação de ser feliz que leva os alemães ao suicídio durante o Natal!

E por que no Natal mais que em outras épocas?

Ora, por razões óbvias: nos festejos natalinos a felicidade se mostra mais explícita, ou melhor, as pessoas se preocupam em demonstar que são felizes mais que em outras datas. Sorrisos estampados nos rostos, presentes, árvore, ceia, tudo a compor um cenário perfeito para a felicidade – felicidade precisa de cenário?

“Reunir a família, cear, trocar presentes; pra mim, isso é felicidade”.


Isso é felicidade? Felicidade é?


A felicidade enquanto meta me parece absurdo! Uma busca a la Indiana Jones, meio sem rumo, meio sem objeto. E a qualquer momento, se não correr o suficiente, você pode ser esmagado por uma pedra gigantesca – dinheiro, casamento, carro, viagem! Ter que ser feliz é realmente insuportável.


Se é caminhando que se faz o caminho, por que não simplesmente viver o agora?

“Nós não precisamos saber pra onde vamos, nós só precisamos ir.”

Na contramão do mundo, eu berro: abaixo a felicidade!

A felicidade mata alemães.

Quociente de solidariedade


"Eu era defensor público na época. Não pelo salário ou pela estabilidade do serviço público, como os meus colegas. Não fiz um concurso qualquer, só para conseguir a festejada independência financeira. Eu era defensor porque precisava ser. E até amava o meu trabalho.

Era final de uma tarde de calor insuportável. O meu assitido tinha saído de casa às seis da manhã e perambulado pela cidade o dia inteiro, a pé, óbvio, a cabeça assando debaixo do sol escaldante. Na sala de audiência, o de praxe: o juiz, ao lado do digitador, a promotora de justiça, com sua estagiária e o meu assitido, sentado sozinho, ao lado da minha cadeira, vaga.

Assim que entrei na sala, percebi a situação: todos os presentes estavam muitíssimo incomodados com o mau cheiro do pobre rapaz. Um futum de arranhar as narinas. E ele se encolhia como podia, parecendo tentar se enrolar no próprio corpo, como um tatu-bola, até se tornar praticamente invisível. Seu nome era vergonha.

Entrei, percebi e saí. Agoniado como peixe recém-fisgado, não suportei ficar ali. E me senti muito fraco por isso.

Saí do Fórum e parei na calçada. Dentro da sala de audiência, certamente todos me esperavam para dar início à instrução. Eram já 17 horas e o sol ainda a pino.

Do meu lado, ao pé de uma placa de sinalização de trânsito, um monte de lixo enpestiava o ambiente, com seu cheiro acre de inutilidades humanas. Quem passava por ali, invariavelmente, apertava o nariz com muita força, fugindo daquele desprazer asqueroso.

Fedor. Parecia o cheiro do assistido, pensei. E novamente me senti mal por pensar assim. E não sei se por auto-punição, ou razão outra, cometi essa insanidade. Afrouxei a gravata, abri os primeiros botões da camisa, recolhi um punhado daquele monte de lixo fétido e esfreguei com força pela nuca, peito e axilas.

Arrumei o traje e voltei à sala de audiência. Sentei na cadeira ao lado do meu assitido, me desculpei pelo atraso e pedi que começássemos os trabalhos.

Nem sequer mirei os olhos surpresos (ou agradecidos) daquele réu desgraçado. Eu fazia aquilo porque precisava, não era favor nenhum."

Arnaldo Livard

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Réquiem por um fugitivo


Não que eu tivesse medo. Mas ele era excessivamente pálido. Mesmo sem nunca ter encarado o seu rosto eu já sabia de sua palidez, como sabia de sua frieza sem precisar tocá-lo. Estava ali desde muito tempo, desde antes de mim. Eu o via desde muito pequeno, quando minha mãe abria o guarda-roupa e eu conseguia perceber no meio dos vestidos as suas mãos demasiado longas. No começo não tinha voz para perguntar quem era, o que fazia. E quando finalmente tive voz e tive movimentos, já não era necessária nenhuma pergunta, nenhuma curiosidade. Sabia-o ali, no meio dos vestidos e dos chapéus. Sabia-o ali, pálido e frio, praticamente ausente. Às vezes me comoviam a sua solidão e sua lealdade: nunca vira minha mãe agredi-lo mas, por outro lado, também nunca a vi tomar conhecimento dele. Nem por isso ele solicitava qualquer atenção. Estava apenas ali, tangível e remoto como a parede do fundo do guarda-roupa.

Quando cresci um pouco ganhei um quarto só para mim, o que impôs uma distância maior entre nós. Mesmo assim eu não esquecia dele. Em parte porque seria impossível esquecê-lo, em parte também, principalmente, porque não desejava isso. É verdade, eu o amava. Não com esse amor de carne, de querer tocá-lo e possuí-lo e saber coisas de dentro dele. Era um amor diferente, quase assim feito uma segurança de sabê-lo sempre ali, quando minha mãe saía e eu ficava sozinho ou quando havia tempestade. Mais ou menos como essa coisa que as pessoas são capazes de sentir por um móvel ou um objeto muito antigos. A única diferença era que eu não admitia que ninguém mais pensasse assim. Para ser mais claro: eu tinha ciúme. Nada sei a respeito de sua vida privada, mas às vezes chegava a desconfiar dele com minha mãe. Hoje é a primeira vez que tenho coragem de admitir isso, porque uma coisa terrível aconteceu.

Muitas noites eu ficava tenso na minha cama, procurando ouvir ruídos- certos ruídos- no quarto de minha mãe. Para ser justo, devo dizer que nunca ouvi nada. Claro que de vez em quando alguma madeira estalava no teto, algum rato ensaiava uma corrida furtiva, ou acontecia qualquer outro desses rumores noturnos. São coisas corriqueiras essas, que acontecem, suponho, em qualquer casa- e digo suponho porque nunca vivi em outra casa que não a minha. Mesmo sabendo disso, eu me contraía cheio de suspeita e mágoa. Imaginava-os na cama, fazendo amor, e isso me doía mais, muito mais do que qualquer outra coisa, a não ser o que aconteceu hoje de manhã.

Minha mãe foi muito correta. É verdade que sempre foi viúva, desde que me conheço por gente, mas é verdade também que nunca me tornou cúmplice de sua viuvez. Devia ter seus problemas, claro, mas nunca me tornou participante deles. Ela os resolvia em silêncio, discreta, sabendo que eu sabia, mas sem me impor absolutamente nada. Inclusiva a presença dele, ela não me impôs. Não que o tenha ocultado (e essa atitude me faz ter quase certeza que realmente nada havia entre eles) : abria sem dissímulo a porta do guarda-roupa e eu espiava para dentro sem que ela impedisse ou estimulasse. Também nunca me falou dele. Nem dele nem de outro qualquer, de dentro ou de fora do guarda-roupa. Não que não tivesse confiança em mim, na verdade nunca demonstrou isso- nem o contrário. Embora não nos falássemos, ela sempre foi muito educada, muito gentil. Não lembro de tê-la ouvido falar alguma vez em voz baixa ou em voz terna, ou mesmo em qualquer outra voz, mas isso não importa: o essencial é que ela nunca gritou. E se é verdade que não chegamos a ter amor um pelo outro, é verdade também que não chegamos a ter ódio. Acredito mesmo que tivéssemos descoberto a forma ideal de convivência e comunicação.

A vida era muito dura. Não chegávamos a passar fome ou frio ou nenhuma dessas coisas. Mas era dura porque era sem cor, sem ritmo e também sem forma. Os dias passavam, passavam e passavam, alcançavam as semanas, dobravam as quinzenas, atingiam os meses, acumulavam-se em anos, amontoavam-se em décadas- e nada acontecia. Eu tinha a impressão de viver dentro de uma enorme e vazia bola de gás, em constante rotação. A vida só se tornava mais lenta quando, aproveitando a ausência de minha mãe, eu abria devagarinho a porta do guarda-roupa para vê-lo. Não ousava encará-lo: acreditava que seria necessária uma longa aprendizagem antes de submetê-lo à visão da minha face. Não que ela fosse excessivamente feia ou disforme, não se trata disso. Mas é que não havia no meu rosto nada de peculiar ou de interessante, nada que fosse digno de seu olhar. Ele tinha um olhar feito somente para coisas dignas, esclareço.

Assim, eu me satisfazia em observar seus pés, suas pernas, até um pouco acima dos joelhos onde repousavam, suspensas, aquelas mãos. E isso era espantoso: os pés, as pernas, os joelhos, as mãos. Era tão maravilhosamente espantoso que eu não suportaria olhar mais adiante, seria demasiado para meus pobres olhos que, ao contrário dos dele, foram feitos para o trivial. Seus pés era muito magros e estavam descalços. Tinham magníficas falanges de ossos perfeitos e um detalhe que os diferenciava de quaisquer outros pés – o segundo dedo era maior que o primeiro, e de uma perfeição indescritível, com sua ponta levemente quadrada e sua unha um pouco azul. como se ele fosse anêmico ou sentisse muito frio. Foi pensando nessa segunda hipótese que, um dia, de cabeça baixa, troquei alguns vestidos de lugar, deixando mais próximo dele o casaco de peles de minha mãe. Acho que não adiantou nada, pois no dia seguinte a unha do segundo dedo continuava azulada, com uma pequena diferença: a meia-lua estava um pouco mais estreita. As suas pernas eu não podia ver, havia aquela roupa branca muito comprida, que escondia inclusive os tornozelos. Ainda assim, podia intuir por baixo do tecido leve a delicadeza de sua ossatura, que se confirmava nas mãos, dignas de qualquer poema, de qualquer tela, de qualquer sinfonia. Sei que fico um tanto ridículo falando delas nesse tom, mas não consigo evitá-lo: quando se quer explicar o inexplicável sempre se fica um pouco piegas. Por isso me eximo de descrevê-las. Digo apenas que estavam ali, paradas, e aqueles pés esplêndidos em muito ficavam lhes devendo. Eram essas mãos que povoavam meus sonhos. Meus sonhos eram repletos dessas mãos, que ora me indicavam caminhos, ora me acariciavam os cabelos, ora dançavam tomadas de vida própria. Acordava assustado com minha própria audácia, chegando a desejar que num dos sonhos elas ensaiassem um gesto mais ríspido para que eu pudesse detestá-las ou temê-las. Mas eram sempre doces, e isso nunca aconteceu.

Foi quando minha mãe morreu, ontem à noite. Eu estava deitado no meu quarto quando a ouvi morrendo. Era um som inconfundível: nenhuma das suas caixinhas de música, nenhum dos ruídos noturnos, nenhum de seus amantes conseguira jamais produzir aquele som. Era escuro e rouco como as coisas que não têm depois. Fiquei a escutar por um instante, sem me abalar, pois sabia que ela morreria um dia, como todas as pessoas, e não me atemorizava nem me surpreendia que esse dia fosse ontem, hoje ou amanhã. Depois de escutar durante uns cinco minutos abandonei as flores de cartolina que costumava fazer e fui até seu quarto. Quando cheguei, o som já havia diminuído de intensidade e, quando a toquei, desaparecera por completo. Deduzi que estava morta. Telefonei para o médico, que veio e confirmou minha suspeita, e depois para a funerária, que a encaixotou e levou. Passei a noite mais insone do que de costume. Restávamos, agora, eu e ele. E eu não sabia como tratá-lo, como comunicar a ele o acontecimento. Imaginava que as pessoas como ele fossem difíceis, sensíveis, e ele era tão mais pálido que as gentes que eu costumava ver pela janela que estava realmente confuso.

Hoje de manhã armei-me de toda coragem e abri a porta do guarda-roupa. Ele estava lá, no mesmo lugar. Foi só então que tive a minha suspeita- pois até esse momento não passara de uma suspeita- confirmada. As dúvidas se diluíram e eu tive certeza: tratava-se realmente de um anjo. Não sei se arcanjo ou serafim, mas indubitavelmente, irreversivelmente, inconfundivelmente- um anjo. Olhei-o, então. Acreditei que o momento houvesse chegado, e olhei-o. Confesso que esperava um sorriso ou qualquer outra manifestação dessas de afeto. Mas não houve nada disso. Não pude sequer perceber se era moreno ou louro, castanho ou ruivo. O que aconteceu foi apenas um clarão enorme e um ruído quase ensurdecedor de asas... como se diz mesmo? ...ruflando, é isso: um ruído quase ensurdecedor de asas ruflando. Em seguida saiu pela janela aberta, alcançou os galhos mais altos dos plátanos desfolhados e desapareceu. Julguei ainda ouvir a voz dele dizendo que voltaria, mas não explicou quando. Não sei também se disse isso apenas por gentileza, para me consolar, ou se realmente pretende voltar um dia.

O que nunca pensei é que pudesse ser assim tão vazia uma casa sem um anjo. Dentro de mim existe alguma coisa que espera a sua volta, de repente, não sei se pela janela ou se aparecerá novamente no mesmo lugar. Para prevenir surpresas, tenho deixado sempre abertas todas as janelas e todas as portas de todos os guarda-roupas. Enquanto não chega, preparo duas coroas de flores: uma para o túmulo de minha mãe, outra para o guarda-roupa que ele habitava.


Caio Fernando Abreu.

Deus ataca bonito- para Rafael


"O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando.


Afinam ou desafinam.


Verdade maior. É o que a vida nos ensinou. Isso que me alegra, montão. E, outra coisa: o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - dá gosto.


A força dele, quando quer - moço! - me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre.


E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza".


Riobaldo Tatarana, personagem de João Guimarães Rosa em "Grande Sertão: Veredas".