terça-feira, 27 de outubro de 2009

Galeano... (d)O teatro do bem e do mal

Os Invisíveis

Aquilo começou com uma explosão de violência. Poucos dias antes do natal, numerosos famintos tomaram de assalto os supermercados. Entre os desesperados, como costuma ocorrer, infiltraram-se uns quantos delinqüentes. E nessas horas de caos, enquanto corria o sangue, o presidente da Argentina falou pela televisão. Palavra mais ou palavra menos, disse: a realidade não existe, as pessoas não existem.

E então nasceu a musica. Começou devagarinho, soando nas cozinhas de algumas casas, colheres batiam nas panelas, e saiu pelas janelas, pelas sacadas. E foi-se multiplicando de casa em casa e ganhou as ruas de Buenos Aires. Cada som se uniu a outros sons, pessoas se uniram com pessoas, e na noite explodiu o concerto da revolta coletiva. Ao som das panelas e sem outras armas senão estas, a multidão invadiu os bairros, a cidade, o país. A policia respondeu a balaços. Mas as pessoas, inesperadamente poderosas, derrubaram o governo.

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Os invisíveis, fato raro, tinham ocupado o centro do palco.

Não só na Argentina, não só na América Latina, o sistema está cego. O que são as pessoas de carne e osso? Para os mais notórios economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros, devedores. Para os mais eficientes tecnocratas, incômodos. E para os mais exitosos políticos, votos.

O movimento popular que defenestrou o presidente De la Rúa foi uma prova de energia democrática. A democracia somos nós, disseram os populares, e estamos fartos. Ou acaso a democracia consiste somente no direito de votar a cada quatro anos? Direito de eleição ou direito de traição? Na Argentina, como em tantos outros países, as pessoas votam, mas não elegem. Votam em um, governa outro: governa o clone.

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No governo, o clone faz ao contrario tudo o que o candidato prometeu durante a campanha eleitoral. Segundo a célebre definição de Oscar Wilde, cínico é aquele que conhece o preço de tudo e o valor de nada. O cinismo se disfarça de realismo; e assim se desprestigia a democracia.

As pesquisas indicam que a América Latina, hoje em dia, é a região do mundo que menos acredita no sistema democrático de governo. Uma dessas pesquisas, publicada pela revista The Economist, revelou a queda vertical da fé da opinião pública na democracia, em quase todos os países latino-americanos: segundo esses dados, recolhidos há meio ano, só acreditavam nela seis de cada dez argentinos, bolivianos, venezuelanos, peruanos e hondurenhos, menos da metade dos mexicanos, nicaragüenses e chilenos, não mais do que um terço de colombianos, guatemaltecos, panamenhos e paraguaios, menos de um terço de brasileiros e apenas um de cada quatro salvadorenhos.

Triste panorama, caldo gordo para os demagogos e os messias fardados: muita gente, sobretudo muita gente jovem, sente que o verdadeiro domicílio dos políticos é a cova do Ali Babá e os quarenta ladrões.

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Uma lembrança de infância do escritor argentino Héctor Tizón: na Avenida de Mayo, em Buenos Aires, seu pai mostrou-lhe um homem que, na calçada, atrás de uma mesinha, vendia pomadas e escovas para lustrar sapatos:

- Aquele senhor se chama Elpidio González. Olha bem. Ele foi vice-presidente da república.

Eram outros tempos. Sessenta anos depois, nas eleições legislativas de 2001, houve uma enxurrada de votos em branco ou anulados, algo jamais visto, um recorde mundial. Entre os votos anulados, o candidato triunfante era o pato Clemente, um famoso personagem de historia em quadrinhos: como não tinha mãos, não podia roubar.

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Talvez a América Latina jamais tenha sofrido um esbulho político comparável ao da década passada. Com a cumplicidade e o amparo do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, sempre exigentes em matéria de austeridade e transparência, vários governantes roubaram até ferraduras de cavalos a galope. Nos anos das privatizações, leiloaram tudo, até as lajotas das calçadas e os leões do zoológico; e o produto do leilão se evaporou. Os países foram vendidos para pagamento da dívida externa, segundo mandavam os que de fato mandam, mas a dívida, misteriosamente, multiplicou-se, nas mãos ligeiras de Carlos Menem e muitos outros de seus colegas. E os cidadãos, os invisíveis, ficaram sem países, com uma imensa dívida para pagar, pratos quebrados da festa alheia.

Os governos pedem permissão, fazem seus deveres e prestam exames: não diante dos cidadãos que votam, mas diante dos banqueiros que vetam.

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Agora que estamos todos em plena guerra contra o terrorismo internacional, cabem certas dúvidas. O que devemos fazer com o terrorismo de mercado, que está castigando a imensa maioria da humanidade? Ou não são terroristas os métodos dos altos organismos internacionais, que em escala planetária dirigem as finanças, o comércio e o resto? Acaso não praticam a extorsão e o crime, ainda que matem por asfixia e de fome e não por bomba? Não estão despedaçando os direitos dos trabalhadores? Não estão assassinando a soberania nacional, a industria nacional, a cultura nacional?

A Argentina era a aluna mais aplicada do Fundo Monetário, do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio. E foi o que se viu.

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Damas e cavalheiros: primeiro os banqueiros. E onde manda capitão, não manda marinheiro. Palavras mais ou palavras menos, esta foi a primeira mensagem que o presidente George W. Bush enviou à Argentina. Da cidade de Washington, capital dos Estados Unidos e do mundo, Bush declarou que o novo governo argentino deve “proteger” seus credores e o fundo Monetário Internacional e levar adiante uma política de “maior austeridade”.

Enquanto isso, o novo presidente provisório argentino, que substitui De la Rua até as próximas eleições, meteu os pés pelas mãos em sua primeira declaração à imprensa. Um jornalista perguntou o que iria priorizar, a dívida ou as pessoas, e ele respondeu: “A dívida”. Dom Sigmund Freud sorriu em seu túmulo, mas Adolfo Rodríguez Saá logo corrigiu a resposta. Pouco depois, anunciou que suspenderia os pagamentos da dívida e destinaria esse dinheiro à criação de fontes de trabalho para as legiões de desempregados.

A dívida ou as pessoas, esta é a questão. E agora as pessoas, os invisíveis, exigem e vigiam.

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Há coisa de um século, Dom José Batlle y Ordóñez, presidente do Uruguai, assistia a uma partida de futebol. E comentou:

- Que bonito seria se houvesse 22 espectadores e dez mil jogadores.

Talvez se referisse à educação física, que ele promoveu. Ou estava falando, quem sabe, da democracia que imaginava.

Um século depois, na Argentina, o país vizinho, muitos manifestantes envergavam a camiseta de sua seleção nacional de futebol, seu sentido símbolo de identidade, sua alegre certeza de pátria: vestindo a camiseta, invadiram as ruas. As pessoas, fartas de serem espectadoras de sua própria humilhação, invadiram a cancha. Não vai ser fácil desalojá-las.

Eduardo Galeano

(2001)

4 comentários:

  1. Rapidinho, ainda não li esse post... mas a paradinha do opressor e do oprimido foi pra onde? sumiu... da menina e do menino... aquele post de Bola...

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  2. e o nosso mundo continua exaltando a democracia... e em nome da democracia, legitima-se o terrorismo de estado. =P

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  3. Eu também ando galeano um pouco por aí.

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  4. Das pertinentes perguntas do Galeano:

    "Ficará o mundo sem mundo?"

    Temo que sim...

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